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Insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal: novos critérios diagnósticos e avanços fisiopatológicos

Resumos

A insuficiência cardíaca (IC) é uma complexa síndrome cardiovascular com elevada prevalência, sendo que seu quadro clínico frequentemente é associado à dilatação do ventrículo, à diminuição da contratilidade e à reduzida fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FE). Porém, nas últimas duas décadas, estudos têm mostrado que muitos pacientes com sintomas e sinais de IC apresentam FE normal (maior que 50%). A grande dificuldade dos médicos estaria na identificação desses pacientes que apresentam insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal (ICFEN). Esta dificuldade parece estar relacionada principalmente a alta complexidade da síndrome e a falta de um método padrão para confirmar ou excluir o diagnóstico, que pudesse ser utilizado rotineiramente na prática clínica. Diferentemente da insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER), em que um único parâmetro - a FE menor que 50% - confirma o diagnóstico da síndrome, na ICFEN diferentes índices diastólicos têm sido empregados para caracterizar a presença ou não da disfunção diastólica (DD). Esta revisão tem o propósito de mostrar novos conceitos relacionados à função diastólica que irão auxiliar no entendimento da fisiopatologia cardiovascular presente na ICFEN. O presente trabalho tem também o objetivo de discutir a nova diretriz da Sociedade Européia de Cardiologia para o diagnóstico e exclusão da ICFEN, baseada nos índices de função cardíaca obtidos pelo ecocardiograma com Doppler tecidual (EDT) e na dosagem do peptídeo natriurético.

Insuficiência cardíaca; diástole; sístole; ecodoppler tecidual; fração de ejeção


La insuficiencia cardiaca (IC) es un complejo síndrome cardiovascular con elevada prevalencia, y su cuadro clínico se asocia frecuentemente a la dilatación del ventrículo, la disminución de la contractilidad y la reducida fracción de eyección del ventrículo izquierdo (FE). Sin embargo, en las últimas dos décadas, estudios han evidenciado que muchos pacientes con síntomas y señales de IC presentan FE normal (mayor que el 50%). La gran dificultad de los médicos estaría en la identificación de esos pacientes que presentan insuficiencia cardiaca con fracción de eyección normal (ICFEN). Esta dificultad parece estar relacionada principalmente a alta complejidad del síndrome y la falta de un método estándar para que se confirme o excluya el diagnóstico que pudiera utilizarse rutinariamente en la práctica clínica. Diferentemente de la insuficiencia cardiaca con fracción de eyección reducida (ICFER), en la que un único parámetro - la FE menor que el 50%- confirma el diagnóstico del síndrome, en la ICFEN diferentes índices diastólicos se han empleado para que se caracterice la presencia o no de la disfunción diastólica (DD). Esta revisión tiene el propósito de revelar nuevos conceptos relacionados a la función diastólica que auxiliarán la comprensión de la fisiopatología cardiovascular presente en la ICFEN. El presente trabajo tiene también por objeto que se discuta la nueva directriz de la Sociedad Europea de Cardiología para el diagnóstico y exclusión de la ICFEN, basada en los índices de función cardiaca obtenidos por el ecocardiograma con Doppler tisular (EDT) y en la dosificación del péptido natriurético.

Insuficiencia cardiaca; diástole; sístole; ecocardiografía doppler tisular; fracción de eyección


Heart failure (HF) is a highly prevalent complex cardiovascular syndrome, and its clinical presentation is usually associated with ventricular dilatation, decreased contractility and reduced left ventricular ejection fraction (EF). However, in the past two decades studies have demonstrated that many patients with signs and symptoms of HF have normal EF (higher than 50%). The great challenge for doctors lies in the identification of patients presenting heart failure with normal ejection fraction (HFNEF) and this challenge seems to be mainly related to the high complexity of the syndrome and to the lack of a standardized method to confirm or exclude the diagnosis that could be used in the daily clinical practice. Unlike in heart failure with reduced ejection fraction (HFREF) in which one single parameter - EF lower than 50%, is sufficient to confirm the diagnosis of the syndrome, in HFNEF different diastolic indexes have been used to characterize the presence or absence of diastolic dysfunction (DD). The purpose of this review is to show new concepts related to the diastolic function that will help understand the cardiovascular pathophysiology of HFNEF, and to discuss the new guideline of the European Society of Cardiology for the diagnosis and exclusion of HFNEF based on cardiac function indices obtained using tissue Doppler imaging (TDI) and natriuretic peptide determination.

heart failure; diastole; systole; echocardiography; Doppler; stroke volume


ARTIGO DE REVISÃO

Insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal - novos critérios diagnósticos e avanços fisiopatológicos

Evandro Tinoco MesquitaI,II; Antonio José Lagoeiro JorgeII

IHospital Pró-Cardíaco, Rio de Janeiro, RJ

IIUniversidade Federal Fluminense, Niterói, RJ - Brasil

Correspondência Correspondência: Evandro Tinoco Mesquita Rua General Polidoro, 192 - Botafogo 22.280-000, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: etmesquita@gmail.com

RESUMO

A insuficiência cardíaca (IC) é uma complexa síndrome cardiovascular com elevada prevalência, sendo que seu quadro clínico frequentemente é associado à dilatação do ventrículo, à diminuição da contratilidade e à reduzida fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FE). Porém, nas últimas duas décadas, estudos têm mostrado que muitos pacientes com sintomas e sinais de IC apresentam FE normal (maior que 50%). A grande dificuldade dos médicos estaria na identificação desses pacientes que apresentam insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal (ICFEN). Esta dificuldade parece estar relacionada principalmente a alta complexidade da síndrome e a falta de um método padrão para confirmar ou excluir o diagnóstico, que pudesse ser utilizado rotineiramente na prática clínica. Diferentemente da insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER), em que um único parâmetro - a FE menor que 50% - confirma o diagnóstico da síndrome, na ICFEN diferentes índices diastólicos têm sido empregados para caracterizar a presença ou não da disfunção diastólica (DD). Esta revisão tem o propósito de mostrar novos conceitos relacionados à função diastólica que irão auxiliar no entendimento da fisiopatologia cardiovascular presente na ICFEN. O presente trabalho tem também o objetivo de discutir a nova diretriz da Sociedade Européia de Cardiologia para o diagnóstico e exclusão da ICFEN, baseada nos índices de função cardíaca obtidos pelo ecocardiograma com Doppler tecidual (EDT) e na dosagem do peptídeo natriurético.

Palavras-chaves: Insuficiência cardíaca, diástole, sístole, ecodoppler tecidual, fração de ejeção.

Introdução

A avaliação do desempenho cardíaco global através da medida da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FE) tem provocado grandes debates e controvérsias em relação à nomenclatura, à definição e ao diagnóstico da ICFEN1.

A ICFEN é frequentemente referida como insuficiência cardíaca diastólica (ICD) devido à presença de disfunção diastólica (DD) caracterizada por redução do relaxamento e aumento da rigidez ventricular2-4. Porém a utilização do termo ICD não seria adequada já que a disfunção diastólica não é única para estes pacientes, ocorrendo também em pacientes com insuficiência cardíaca (IC) com disfunção sistólica. Portanto, na ausência de um papel diferenciado para disfunção diastólica, pacientes que apresentam IC sem redução da FE seriam mais corretamente definidos pelo termo ICFEN, em vez do termo ICD5.

A distinção entre ICFEN e ICFER é baseada na medida da FE feita pelo ecocardiograma com Doppler. Tal processo dá a impressão de que pacientes com ICFEN têm apenas alterações na função diastólica, com a função sistólica preservada. No entanto, novas técnicas de avaliação da função cardíaca através da medida da velocidade do eixo longitudinal pelo eco Doppler tecidual (EDT) têm se mostrado um índice mais sensível para avaliação da função sistólica do que a FE4.

Logo, a ICFEN seria resultado da disfunção sistólica da bomba muscular ventricular na presença de um desempenho preservado da bomba hemodinâmica6. Isto é, quando avaliamos isoladamente a FE do ventrículo esquerdo podemos não identificar anormalidades presentes na contratilidade miocárdica4,6.

Mesmo com prognóstico desfavorável a ICFEN é hoje uma síndrome clínica pouco valorizada quando comparada ao diagnóstico de outras doenças não cardíacas, tais como câncer e diabete, e de doenças cardíacas como o infarto do miocárdio1. A pouca importância dada ao diagnóstico da ICFEN pode estar relacionada principalmente a alta complexidade da síndrome, ao baixo convencimento devido a dificuldade de identificar um método padrão para quantificar o diagnóstico, que pudesse ser utilizado na prática clínica e também devido às controvérsias que envolvem a definição de disfunção diastólica e de critérios para diagnóstico de ICFEN1.

Recentemente, a Sociedade Européia de Cardiologia publicou uma nova diretriz de como diagnosticar a ICFEN, utilizando dois algoritmos destinados à exclusão e confirmação da síndrome, com ênfase nos achados do EDT e dos peptídeos natriuréticos5.

Epidemiologia

Atualmente, diferentes autores têm mostrado ser a ICFEN a forma mais comum de apresentação da IC e com prognóstico semelhante a ICFER7,8. Estudos epidemiológicos mostram que a prevalência da ICFEN é superior a 50% entre os pacientes com IC7,8. Em artigo publicado recentemente nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Moutinho e cols. observaram uma prevalência de ICFEN de 64,2% em uma população de pacientes atendidos no Programa Médico de Família em Niterói - RJ, com sinais e sintomas de IC9.

É importante destacar que as características demográficas e as comorbidades dos pacientes com IC variam de acordo com a FE8. (Tabela 1) Quando comparamos pacientes com ICFEN com aqueles que apresentam ICFER podemos observar que os primeiros são mais idosos e mais obesos, pertencendo a maioria ao sexo feminino. Pacientes portadores de ICFEN têm história de hipertensão arterial, diabete e fibrilação atrial8.

Apesar de pacientes com ICFEN terem um melhor prognóstico do que aqueles com ICFER, eles apresentam uma significativa morbimortalidade, sendo o prognóstico ruim, após hospitalização por IC7,8,10, com uma taxa de mortalidade em torno de 20% em um ano9. Embora estratégias baseadas em recentes evidências para tratamento da IC tenham modificado favoravelmente os resultados dos pacientes com ICFER, os estudos vêm mostrando um aumento na prevalência da ICFEN sem mudança da mortalidade nos últimos vinte anos8.

ICFEN e ICFER - uma síndrome única ou não?

Não existe consenso entre considerar a IC uma síndrome única e a possibilidade de serem a ICFEN e a ICFER duas formas clínicas diferentes11.

Caso a IC seja caracterizada como uma síndrome única12, ela seria definida por um progressivo declínio no desempenho sistólico, podendo ser melhor avaliado através da análise de velocidades ou medidas envolvendo o encurtamento do eixo longitudinal através do EDT, comparado à medida isolada da FE13.

A teoria de que a IC não seria uma síndrome única e sim duas doenças toma como base tanto alterações estruturais, funcionais e moleculares associadas à função diastólica, como também estudos clínicos com intervenção farmacológica. Além disso, ela mostra que pacientes com ICFEN não têm a mesma resposta que pacientes com ICFER, sugerindo a existência de diferentes mecanismos fisiopatológicos11.

Ressaltamos que é completamente artificial separar as duas fases do ciclo cardíaco (sístole e diástole), mas alguns autores11 têm arguido que na ICFEN a função sistólica é completamente normal e que esta condição clínica é devida a uma disfunção diastólica isolada. Em função disso, deveríamos considerar ICFEN e ICFER entidades clínicas diferentes11. Estes estudos estão baseados em medidas globais derivadas da curva volume pressão do VE que não levam em conta as alterações regionais da função do eixo longitudinal4, as quais são compensadas por um aumento da contratilidade do eixo radial do VE. A curva de pressão/volume pode então permanecer normal apesar de mudanças significativas na arquitetura e forma do ventrículo1.

Elementos chaves da fisiopatologia da disfunção cardíaca

A função diastólica normal permite que o coração tenha um enchimento adequado tanto em repouso quanto no esforço, sem ocorrer aumento das pressões diastólicas. Porém, alterações no relaxamento cardíaco, a presença de hipertrofia miocárdica e o remodelamento são defeitos-chave que alteram a rigidez do ventrículo e as pressões de enchimento, levando à intolerância ao exercício. Esta consequência seria o primeiro sintoma de ICFEN, sendo também o primeiro determinante de redução de qualidade de vida14.

No coração com disfunção diastólica a FE permanece mantida por um bom período. A manutenção do desempenho cardíaco é devida a um período compensatório composto de duas fases - a fase de ativação sistólica e a fase de disfunção sistólica da bomba muscular1.

A fase de ativação sistólica (figura 1) é caracterizada pelo aumento da pressão, do volume e do fluxo ventricular;é reversível e reflete a ativação de todos os mecanismos adaptativos do coração como uma bomba hemodinâmica e muscular1.


Com a manutenção do estresse cardíaco, a ativação sistólica pode progredir para a fase de disfunção sistólica (figura 2)1.


Logo, o completo entendimento da disfunção sistólica da bomba muscular na presença de um desempenho preservado da bomba hemodinâmica, ou seja, FE normal, seria, sem dúvida, o caminho essencial para a compreensão da fase inicial da Síndrome de IC, que chamamos de ICFEN1,4.

Relaxamento anormal

O relaxamento alterado é uma alteração funcional do coração e um dos três critérios obrigatórios no diagnóstico da ICFEN e não pode ser confundido ou usado como sinônimo de ICFEN15.

O melhor caminho para demonstrar que pacientes com ICFEN têm uma anormalidade do relaxamento é mostrar se a relação pressão/volume diastólica final (R-P/VDF) é maior quando comparada ao seu valor normal. Determinadas condições, tais como a hipertrofia (cardiopatia hipertensiva, miocardiopatia hipertrófica, e/ou estenose aórtica) e a isquemia miocárdica, afetam o relaxamento que se torna mais lento e incompleto causando um aumento do VDF15.A R-P/VDF possibilita mostrar que não só a pressão diastólica intraventricular é elevada como também esta elevação é vista em ventrículos que apresentam uma diminuição do volume de enchimento11.

A demonstração da elevação da R-P/DVF é importante porque na ausência desta alteração, o VDF pode estar aumentado devido ao aumento da pré-carga. Isto pode ser observado em pacientes com insuficiência aórtica e mitral sem danos na contratilidade e sem qualquer mudança significativa nas propriedades de relaxamento, assim como a correção cirúrgica da alteração corrige a sobrecarga16.

Hipertrofia Cardíaca

A hipertrofia ventricular é considerada um mecanismo adaptativo do coração frente a um aumento de carga. Esta sobrecarga pode gerar, através de mecanismos intracelulares, diferentes respostas que se associam ou não ao comprometimento funcional do miocárdio17.

O conceito de hipertrofia está baseado na identificação do aumento do peso do coração determinado principalmente pelo aumento do tamanho dos cardiomiócitos17. Não podemos esquecer que as células musculares cardíacas constituem a menor porcentagem de todas as células do miocárdio, porém, por serem as maiores, a variação do seu tamanho determinará um impacto significativo no peso final do coração17.

A resposta hipertrófica pode ser desencadeada por mecanismos naturais de sobrecarga como o determinado pelo crescimento, gravidez e o induzido pela atividade física ou então por mecanismos patológicos como hipertensão arterial, estenose e insuficiência valvar, miocardiopatia e infarto do miocárdio.

A hipertrofia patológica vem acompanhada de perda da contratilidade. A análise das fibras do eixo longitudinal de VE pelo EDT mostra uma diminuição da contração em corações hipertrofiados4 resultante da hipertensão arterial, em relação ao observado em corações normais ou corações de atletas com hipertrofia fisiológica17.

Remodelamento ventricular

As principais diferenças fisiopatológicas entre ICFER e ICFEN são o aumento do volume ventricular e a mudança na forma do ventrículo devido ao processo de remodelamento2. O infarto do miocárdio é um potente estímulo para o processo de remodelação, levando a um aumento do VE e redução da FE. Já na doença cardíaca hipertensiva, o remodelamento é um processo lento, com a hipertrofia do VE levando à disfunção sistólica e diastólica do VE. É neste processo que o aumento compensatório da contração radial tende a normalizar a FE. Contudo, em estágios tardios, a remodelação irá ocorrer com aumento do volume do VE e o paciente então caminhará da ICFEN para a ICFER1.

Atualmente, o emprego de medicamentos que atuam sobre o remodelamento tem se mostrado eficaz no tratamento da IC, considerando que os sinais de remodelamento reverso são um poderoso preditor de melhora clínica2.

Como diagnosticar na prática clinica a ICFEN

Na avaliação da IC, a primeira etapa seria estabelecer o diagnóstico pela presença de sintomas e sinais e quando disponível a dosagem de peptídeos natriuréticos. Em seguida, utilizar um método de cardio-imagem para avaliar objetivamente a função do VE e determinar a principal etiologia e seus mecanismos (ICFEN, ICFER, pericardiopatia e valvopatias). O terceiro passo seria determinar se o remodelamento já estaria presente (aumento de volume do ventrículo) e finalmente buscar pela presença de fatores deletérios adicionais como dissincronia, arritmias e alterações metabólicas e eletrolíticas2.

A Diretriz da SEC5 (Sociedade Européia de Cardiologia) apresenta um modelo algoritmo (figuras 3 e 4) de como fazer o diagnóstico e também de como excluir a ICFEN a partir de novos conceitos sobre a função cardíaca e de medidas do EDT. A Diretriz estabelece três etapas obrigatórias para se fazer o diagnóstico da ICFEN, que são: presença de sinais ou sintomas para diagnóstico de IC, presença de FE maior que 50% e evidências de disfunção diastólica (relaxamento, enchimento e rigidez)5.



Sinais e Sintomas de IC

Os sinais e sintomas de IC incluem edema periférico, hepatomegalia, crepitações pulmonares, edema pulmonar, fadiga e dispnéia. O sintoma mais comum e que também leva a maior dificuldade no diagnóstico diferencial é a dispnéia5. Esta dificuldade é mais presente em pacientes idosos e obesos e que correspondem a maior proporção dos pacientes com ICFEN7. Diferentemente dos pacientes hospitalizados, que são admitidos com quadro clássico de IC e geralmente não geram dúvidas no diagnóstico, os pacientes ambulatoriais queixam-se frequentemente de dispnéia sem sinais detectáveis de congestão, o que leva à necessidade de exames para confirmação do diagnóstico5.

Função sistólica do ventrículo esquerdo normal ou levemente alterada.

A escolha de um ponto de corte do valor da FE para separar ICFEN de ICFER permanece arbitrária5. A Diretriz da SEC estabeleceu o valor de FE>50%, sendo necessária a avaliação de acordo com as recentes recomendações da Sociedade Americana de Ecocardiografia e da Sociedade Européia de Ecocardiografia5.

Os critérios da presença de FE normal têm a necessidade de serem implementados com medidas do volume ventricular, por isso o VDF, que deve ser indexado à superfície corporal, não poderá exceder 97 ml/m2 para o diagnóstico de ICFEN5.

Evidências de relaxamento anormal do VE

A primeira questão é se há necessidade de se avaliar alterações do relaxamento em todos os pacientes com suspeita de ICFEN5.

Pensando nessa possibilidade, Zile MR e cols.18 testaram a hipótese de que medidas da disfunção diastólica não eram sempre necessárias para fazer o diagnóstico de ICFEN. Eles avaliaram pacientes com IC com FE>50% e evidências de remodelamento concêntrico e demonstraram que 92% destes pacientes, tinham uma elevada pressão diastólica final e todos eles tinham pelo menos um índice de relaxamento anormal, enchimento anormal ou rigidez. Neste grupo de pacientes a obtenção dos parâmetros de DD não ofereceu dados adicionais para o diagnóstico, mas somente de confirmação da DD18. Não podemos esquecer que este estudo avaliou pacientes com história de IC estabelecida e logo estes dados não podem ser extrapolados para pacientes que apresentam somente sintomas de dispnéia19.

Um achado importante deste estudo é que evidências de remodelamento concêntrico têm implicação para o diagnóstico de ICFEN e é um potencial substituto para a caracterização da disfunção diastólica18,20. O estudo mostra que um índice de massa da parede do VE > 122 g/m2 para mulheres e > 149 g/m2 para homens é uma evidência suficiente para o diagnóstico de ICFEN quando o EDT não é conclusivo ou quando peptídeos natriuréticos estão elevados18.

Avaliação da função do ventrículo esquerdo pelo EDT

O EDT tem um papel fundamental na avaliação desse processo já que a apresentação clínica da ICFEN é indistinguível da ICFER e com certeza a medida da FE não é relevante, sendo mais importantes as avaliações da disfunção sistólica e diastólica através de medidas do eixo longitudinal (S') e velocidade de estiramento no início da diástole (E') pelo EDT5,14,21.

O desenvolvimento de novas técnicas do EDT13 tem permitido uma maior acurácia na avaliação da função ventricular. Em recente estudo, Wang e cols.20 avaliaram que a medida da velocidade de estiramento no inicio da diástole (E') pelo EDT é um forte preditor de mortalidade quando comparado com dados clínicos e o ecocardiograma padrão. Convém também considerar que esta medida de fácil realização adiciona valor significativo no manejo clinico de pacientes com IC20,22.

O E' tem se mostrado como um forte preditor do prognóstico da IC já que esta medida reflete tanto a função sistólica com o diastólica do VE. Além disso, as fibras subendocárdicas, que são responsáveis pela contração do eixo longitudinal, podem ser mais suscetíveis ao efeito da fibrose, da hipertrofia e da isquemia em função de sua posição, o que explicaria o E' como um bom marcador da doença5.

Outra avaliação frequente do ecocardiograma é a medida da velocidade precoce do fluxo pela valva mitral (E), que pode ser obtida no septo ou na face lateral do anel mitral5.

O EDT tem, portanto, permitido a avaliação quantitativa da função sistólica e diastólica do VE12. Recentes estudos22-24 exploraram o papel prognóstico do EDT em diversas doenças cardíacas como a IC, o infarto agudo do miocárdio e a hipertensão arterial.

Relação E/E'

A relação E/E' tem uma correlação próxima com a pressão de enchimento do VE, sendo que E depende tanto da pressão do átrio esquerdo e do relaxamento do VE, como também da idade, enquanto que E' depende mais especificamente do relaxamento do VE e da idade13.

Portanto, se eliminarmos o relaxamento do VE e a idade na relação E/E' ela se torna a medida da pressão de átrio esquerdo ou a pressão de enchimento do VE13. A relação E/E' pode então ser conceituada como a quantidade de sangue que entra no VE durante a fase de enchimento rápido, sendo E o representante do gradiente necessário para fazer o sangue entrar no VE. Logo, um aumento do E/E' significa um alto gradiente para uma baixa transferência de volume13.

Quando E/E' > 15 as pressões de enchimento do VE estão elevadas e quando a relação < 8 elas são baixas5.

A relação E/E' é então considerada evidência diagnóstica da presença de ICFEN se > 15, e evidência de ausência de ICFEN se < 85,25. Um valor de E/E' entre 8 e 15 é considerado sugestivo, mas não diagnóstico e necessita ser avaliado com outros dados não invasivos para confirmar a ICFEN5.

Volume indexado do átrio esquerdo

O aumento das pressões diastólicas do ventrículo esquerdo ocasiona o remodelamento do átrio esquerdo com aumento do seu volume. Portanto, o volume do átrio esquerdo indexado (VAE-I) pode ser visto como a expressão morfológica da disfunção diastólica do ventrículo esquerdo21.

O aumento do VAE-I (>29 ml/m2) seria um marcador, independente da pressão de enchimento do VE em pacientes com suspeita de ICFEN14.O VAE-I poderia então ser considerado o barômetro do coração21.

Quando o E/E' não é conclusivo (15 < E/E' > 8) para diagnóstico da ICFEN a presença de VAE-I >40 ml/m2 oferece evidências suficientes para confirmar o diagnóstico5,25. Do mesmo modo, um VAE-I <26 ml/m2 é proposto como um pré requisito para excluir ICFEN5.

Peptídeos natriuréticos

O BNP é produzido no miocárdio em resposta a um aumento no estiramento da diástole ventricular e sua secreção produz natriurese, vasodilatação e melhora o relaxamento ventricular21. Em pacientes com ICFEN, valores de BNP têm correlação com índices que avaliam o relaxamento diastólico precoce e tardio do VE. Valores elevados foram observados em pacientes com relaxamento atrasado ou alterado1.

Como os níveis de BNP podem sofrer influências de diversas condições (septicemia, insuficiência hepática, insuficiência renal, DPOC [doença pulmonar obstrutiva crônica], obesidade), um valor elevado de BNP não oferece evidências suficientes para diagnóstico de disfunção diastólica e requer exames adicionais5. Para o diagnóstico de ICFEN, um alto valor preditivo positivo foi determinado quando da escolha do ponto de corte do BNP (200 pg/ml). Para a exclusão de ICFEN, um alto valor preditivo negativo foi estabelecido para o ponto de corte do BNP (<100 pg/ml)5.

Portanto peptídeos natriuréticos são recomendados principalmente para exclusão de ICFEN e não para diagnóstico. Como BNP isoladamente não oferece evidências para diagnóstico de ICFEN, ele sempre necessita ser utilizado com outros exames não invasivos5,25.

Como confirmar e excluir a ICFEN

Tão importante como diagnosticar a ICFEN (figura 3) é determinar a exclusão do diagnóstico em pacientes com quadro de dispnéia e sem sinais de congestão (figura 4), já que o diagnóstico diferencial da ICFEN é de grande dificuldade principalmente nestes pacientes5.

Podemos excluir a ICFEN em pacientes com dispnéia que apresentem um BNP < 100pg/ml devido ao seu alto valor preditivo negativo5,25.

Se o ecocardiograma afasta a presença de doença valvar ou do pericárdio, a FE > 50%, o VDF indexado < 76ml/m2, na ausência de fibrilação atrial, dilatação atrial, hipertrofia do ventrículo esquerdo, sendo ainda a relação E/E' < 8, o diagnóstico de ICFEN pode ser descartado5.

Conclusão

A diretriz da SEC que estabeleceu critérios para confirmação do diagnóstico e exclusão da ICFEN deverá, progressivamente, ser utilizada pelos cardiologistas e ecocardiografistas na avaliação dos pacientes com suspeita de ICFEN.

Apesar da FE ser um índice importante para avaliação da bomba cardíaca hemodinâmica, ela não deve ser utilizada como principal critério para diagnóstico e/ou exclusão de IC, já que a avaliação isolada da FE pode não identificar anormalidades presentes na contratilidade miocárdica.

O EDT, apesar de pouco empregado na prática clinica, é atualmente a melhor ferramenta para o diagnóstico da ICFEN, podendo sua utilização substituir gradualmente os critérios clássicos do ecocardiograma transmitral na avaliação da disfunção diastólica.

Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer ao Professor Dirk L. Brutsaert, do Hospital de Middelheim, Universidade de Antuérpia, Bélgica, pelas informações prestadas aos autores e também pela autorização para utilização das figuras nesta revisão.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Este artigo é parte de dissertação de Mestrado de Antônio Lagoeiro e Evandro Tinoco Mesquita pela Universidade Federal Fluminense.

Referências

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Artigo recebido em 29/02/08; revisado recebido em 09/05/08; aceito em 15/05/08.

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  • Correspondência:
    Evandro Tinoco Mesquita
    Rua General Polidoro, 192 - Botafogo
    22.280-000, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2009

    Histórico

    • Aceito
      15 Maio 2008
    • Revisado
      09 Maio 2008
    • Recebido
      29 Fev 2008
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