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Mais cirurgiões, menos trauma

EDITORIAL

Mais cirurgiões, menos trauma

Gustavo Pereira FragaI; Francisco Salles Collet-SilvaII; Hamilton Petry de SouzaIII

ITCBC-SP, FACS. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP

IITCBC-SP, FACS. Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

IIITCBC-RS, FACS. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Porto Alegre, RS

O Brasil vive atualmente um momento de muita agitação e insatisfação da população que foi às ruas exigir melhorias em áreas como transporte, educação, saúde, e, principalmente, redução da corrupção. O governo federal respondeu atribuindo como causa principal do problema na saúde o déficit crônico de médicos no Sistema Único de Saúde (SUS) e as soluções encontradas de imediato foram: a publicação da Medida Provisória com o programa "Mais Médicos" e, se necessário, a importação de médicos estrangeiros1. O problema é complexo, impossível de ser resolvido com medidas autoritárias sem a participação ativa das entidades médicas e instituições de ensino superior, mas já está servindo como um marco no sentido de mobilização dos profissionais em busca de soluções melhores para garantirem a sobrevida do pouco financiado SUS. E nós, cirurgiões, precisamos participar ativamente da construção dessa nova fase do sistema de saúde do nosso país.

Dados publicados no Demografia Médica apontam que o Brasil tem 1,8 médicos por 1000 habitantes e revelam que somos 13.609 cirurgiões gerais em atuação no país2. Paralelamente às discussões de reformulação dos programas de residência médica em cirurgia geral, temos a necessidade de formação de mais cirurgiões, uma vez que essa é uma das especialidades contempladas no Pró Residência3. Também temos a missão de melhorar o ensino do enfrentamento à doença trauma durante a graduação em todos cursos da área de saúde. Além de mais cirurgiões, observa-se a necessidade de formação de mais profissionais na área de atuação em cirurgia do trauma. E isso justifica a crescente integração entre o Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) e a Sociedade Brasileira de Atendimento Integrado ao Traumatizado (SBAIT), algo que já vem ocorrendo nos últimos anos, mas precisa ser intensificado, principalmente no que se refere à formação de recursos humanos para o SUS.

Entendemos que formando mais cirurgiões para atuar em urgências teremos menor incidência de trauma e redução da morbidade e mortalidade, pois em sistemas de trauma de países desenvolvidos esse profissional está comprometido nos grandes centros com todas as fases do cuidado ao traumatizado, o que inclui a prevenção. Seria utopia pensar que essa medida isolada minimizaria a epidemia de mortes por homicídios, acidentes e outras formas de trauma, mas já está comprovado que a organização do sistema, que inclui cirurgiões adequadamente preparados na residência médica, reduz os óbitos evitáveis e as sequelas em traumatizados. O Brasil é um dos únicos países do mundo que confere o título de Cirurgião Geral ao médico após dois anos de residência. Além disso, com mais um ano de área de atuação em Cirurgia do Trauma não é possível formar um profissional que conheça epidemiologia, prevenção, atue em pré-hospitalar, seja competente em diagnóstico e conduta (cirúrgica ou não) na sala de urgência, tenha liderança para atuar com outros profissionais e especialidades médicas que o traumatizado grave exige, que desenvolva a técnica cirúrgica de casos complexos, atue em unidade de terapia intensiva cirúrgica, registre e monitore a qualidade do atendimento prestado, auxilie na reabilitação da vítima, desenvolva pesquisa, entre outras habilidades que precisam ser adquiridas nessa fase de treinamento. Ou seja, isso é formar um cirurgião do trauma e emergência, pois obviamente seria esse mesmo cirurgião o responsável pelas urgências cirúrgicas não traumáticas nos prontos socorros dos grandes hospitais, pois é isso que o SUS e a população brasileira precisam para enfrentar a terceira causa de morte no país.

A SBAIT tem feito a sua parte. Participou ativamente da elaboração da Linha de Cuidado ao Trauma4 junto com o Ministério da Saúde e outras sociedades médicas, está desenvolvendo o Registro de Trauma Brasileiro, tem organizado projetos de prevenção (o Prevention Alcohol Risk-Related Trauma in Youth - P.A.R.T.Y. é um exemplo)5, vem realizando cursos e simpósios em diferentes estados, reuniões frequentes via telemedicina, auxiliando na abertura de programas de residência em cirurgia do trauma, abrindo novos capítulos e atraindo novos sócios, muitos egressos de Ligas de Trauma. Precisamos fazer e formar mais.

Do ponto de vista científico, a parceria com o CBC tem sido muito importante. Começou em 2008, quando foi realizado o XXI Panamerican Trauma Congress, VIII Congresso SBAIT e X Congresso Brasileiro das Ligas do Trauma (CoLT), em Campinas, quando foi publicado um suplemento da Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões com o resumo de 347 artigos6. Em 2011 um estudo mostrou que apenas 2,9% desses trabalhos foram publicados na íntegra após dois anos7. Em 2012 foi iniciado o projeto de "Telemedicina Baseada em Evidências - Cirurgia do Trauma e Emergência" (TBE-CiTE), com apoio da Universidade de Toronto, que em cada número da revista apresenta recomendações aos cirurgiões brasileiros após discussão entre diferentes serviços8. Em agosto de 2012, durante o World Trauma Congress, X Congresso SBAIT e XIV CoLT, a revista do CBC dedicou seu o seu fascículo 4 do volume 39 a artigos de cirurgia do trauma e emergência, sendo selecionados 13 artigos originais que, após peer review, foram publicados e apresentados no congresso.

Estudo recente mostrou que a produção científica em cirurgia do trauma e emergência no Brasil vem aumentando nos últimos anos9. E com essas ações da SBAIT com o CBC, materializada novamente nesse fascículo 4 do volume 40, a tendência é que esse crescimento seja ainda maior, pois tem ocorrido estímulo para que os jovens cirurgiões publiquem os seus estudos, disseminando o conhecimento e a pesquisa.

No presente número, a literatura internacional poderá conhecer estudos realizados por acadêmicos e seus orientadores sobre acidentes com material biológico e orientações de alta no pronto socorro. Também traz artigos originais sobre atendimento pré-hospitalar, trauma no idoso, trauma craniencefálico por projétil de arma de fogo, fatores preditivos de lesões abdominais graves no trauma abdominal contuso, evolução do tratamento não operatório (em lesões de fígado, baço e rim) e o uso de terapia de pressão negativa em trauma complexo de períneo. A revista apresenta um artigo de urgência abdominal não traumática com relato de experiência com íleo biliar e um excelente artigo de revisão sobre nutrição no trauma.

Nesse cenário nacional conturbado, em que a deficiência do sistema de saúde foi atribuída à falta de médicos, acreditamos que SBAIT e CBC devem continuar atuando juntos, empenhados na formação de mais cirurgiões, com qualidade, com programas de residência com maior período de treinamento, incentivando a assistência no SUS, o ensino e a pesquisa. Se passarmos isso para a nova geração de cirurgiões, envolvendo-os em prevenção, talvez no futuro seja possível atingir outra meta, que é ter menos trauma dizimando a nossa população.

  • 1
    Presidência da República.( Casa Civil.( Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasil. Medida Provisória No 621, de 8 de julho de 2013. Institui o Programa Mais Médicos e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Mpv/mpv621.htm Acesso em 9 de agosto de 2013.
  • 2. Scheffer M, Biancarelli A, Cassenote A. Demografia Médica no Brasil: dados gerais e descrições de desigualdades. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo e Conselho Federal de Medicina, 2011.
  • 3
    Ministério da Saúde. Brasil. Programa Nacional de Apoio à Formação de Médicos Especialistas em Áreas Estratégicas (Pró-Residência). Edital No 29, de 27 de junho de 2013. Disponível em http://sigresidencias.saude.gov.br/ Acesso em 9 de agosto de 2013.
  • 4
    Portaria Nº 1.366, de 8 de julho de 2013. Estabelece a organização dos Centros de Trauma, estabelecimentos de saúde integrantes da Linha de Cuidado ao Trauma da Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em http://www.brasilsus.com.br/legislacoes/legislacoes-recentes/legislacoes/gm/119738-1366.html Acesso em 9 de agosto de 2013.
  • 5. Banfield JM, Gomez M, Kiss A, Redelmeier DA, Brenneman F. Effectiveness of the P.A.R.T.Y. (Prevent Alcohol and Risk-related Trauma in Youth) program in preventing traumatic injuries: a 10-year analysis. J Trauma. 2011;70(3):732-5.
  • 6. Mantovani M, Fraga GP, Petry HS. Trauma Sem Fronteiras. Rev Col Bras Cir. 2008;35(Supl. 1):v.
  • 7. de Andrade VA, Carpini S, Schwingel R, Calderan TR, Fraga GP. Publication of papers presented in a Brazilian Trauma Congress. Rev Col Bras Cir. 2011;38(3):172-6.
  • 8. Fraga GP, Nascimento B Jr, Rizoli S. Evidence-based telemedicine: trauma & acute care surgery (EBT-TACS). Rev Col Bras Cir. 2012;39(1):3.
  • 9. Fraga GP, Augusto de Andrade V, Schwingel R, Neto JP, Starling SV, Rizoli S. The scientific production in trauma of an emerging country. World J Emerg Surg. 2012 Aug 22;7 Suppl 1:S13.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2013
  • Data do Fascículo
    Ago 2013
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