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Variações nos níveis de adiponectina nos pacientes com doença renal crônica: um estudo prospectivo de 12 meses

Resumos

INTRODUÇÃO: As complicações cardiovasculares permanecem como a principal causa de mortalidade nos pacientes portadores de doença renal crônica (DRC). A adiponectina é uma proteína produzida pelo tecido adiposo que apresenta importante propriedade cardioprotetora. O nosso objetivo foi investigar os determinantes dos níveis de adiponectina nos pacientes com DRC. MÉTODOS: Este estudo prospectivo observacional incluiu 98 pacientes [taxa de filtração glomerular (TFG) 36,1+-14,4 ml/min; 56,5+-10,4 anos; 63% homens; 31% diabéticos e índice de massa corporal (IMC) 27,1+-5,2 kg/m²]. A avaliação da adiponectina (teste imunoenzimático), dos parâmetros laboratoriais, do estado nutricional (avaliação global subjetiva), da gordura corporal total (absortometria de raios-x de dupla energia) e da gordura abdominal visceral e subcutânea (tomografia computadorizada) foi realizada no início e após 12 meses. RESULTADOS: A adiponectina correlacionou-se com a TFG (r = -0,45; p < 0,001), a proteinúria (r = 0,21; p = 0,04), o IMC (r = -0,33; p < 0,01) e a gordura visceral (r = -0,49; p < 0,001). Na análise de regressão múltipla, os determinantes das concentrações de adiponectina foram o sexo (feminino β = 3,8; p < 0,01), a idade (β = 0,14; p = 0,03), a TFG (β = -0,15; p < 0,01) e a gordura visceral (β = -0,04; p < 0,001) (R² = 0,41). Após 12 meses, a progressão da DRC foi evidenciada pela diminuição da TFG (-1,6+-6,3 ml/min; p = 0,01) e aumento da proteinúria (0,3+-0,8 g/d; p < 0,01). Houve um aumento da gordura visceral de 97+-73 cm² para 111+-82 cm² (p < 0,001) e concomitante redução dos níveis de adiponectina, de 27,6+-7,5 mg/l para 22,2+-11,6 mg/l (p < 0,001). O peso corporal, o IMC, a gordura corporal total e a gordura abdominal subcutânea não se alteraram neste período. Ajustando pelos fatores associados à adiponectina, observamos que somente o acúmulo de gordura visceral ao longo do tempo determinou a redução nos níveis de adiponectina (β = -0,04; p = 0,025; R² = 0,21). CONCLUSÃO: A idade, o sexo, a função renal e a gordura visceral estiveram independentemente associados com os níveis de adiponectina nos pacientes com DRC na fase não dialítica. No entanto, a mudança da gordura visceral foi o único preditor das variações nos níveis de adiponectina ao longo de 12 meses.

adipocinas; adiponectina; insuficiência renal crônica; obesidade; obesidade abdominal


BACKGROUND: Cardiovascular complications remain the main cause of mortality in patients with chronic kidney disease (CKD). Adiponectin is an adipose tissue-derived protein that carries important cardioprotective properties. We aimed at investigating the determinants of adiponectin levels in CKD patients. METHODS: This prospective observational study included 98 CKD patients [glomerular filtration rate (GFR) 36.1+-14.4 ml/min, 56.5+-10.4 y, 63% male, 31% diabetics, and body mass index (BMI) 27.1+-5.2 kg/m²]. Evaluation of adiponectin (imunoenzimatic assay), laboratory parameters, nutritional status (subjective global assessment), total body fat (dual x-ray energy absorptiometry), and visceral and subcutaneous abdominal fat (computed tomography) was performed at baseline and after 12 months. RESULTS: Adiponectin correlated with GFR (r = -0.45; p < 0.001), proteinuria (r = 0.21; p = 0.04), BMI (r = -0.33; p < 0.01), and visceral fat (r = -0.49; p < 0.001). In the linear regression analysis, the determinants of adiponectin levels were sex (female β = 3.8; p < 0.01), age (β = 0.14; p = 0.03), GFR (β = -0.15; p < 0.01) and visceral fat (β = -0.04; p < 0.001) (R² = 0.41). After 12 months, a progression of the disease was evidenced by the reduction of GFR (-1.6+-6.3 ml/min; p = 0.01) and increase of proteinuria (0.3+-0.8 g/d; p < 0.01). An accumulation of visceral fat was observed, from 97+-73 cm² to 111+-82 cm² (p < 0.001), with a concomitant reduction of adiponectin concentration, from 27.6+-7.5 mg/l to 22.2+-11.6 mg/l (p < 0.001). Body weight, BMI, total body fat, and subcutaneous abdominal fat remained unchanged. After adjustments for the baseline determinants of adiponectin, the increase in visceral fat was independently associated with overtime decrease in adiponectin levels (β = -0.04; p = 0.025; R² = 0.21). CONCLUSION: Age, sex, renal function and visceral fat were independently associated with adiponectin levels in nondialyzed CKD patients. However, variation in visceral fat was the only predictor of variation in adiponectin levels over 12 months.

adipokines; adiponectin; obesity; obesity, abdominal; renal insufficiency, chronic


ARTIGO ORIGINAL

Variações nos níveis de adiponectina nos pacientes com doença renal crônica: um estudo prospectivo de 12 meses

Maria Ayako KamimuraI; Maria Eugênia Fernandes CanzianiII; Fabiana Ribeiro SanchesIII; Claudia Modesto VelludoIII; Juan Jesus CarreroIV; Ana Paula BazanelliV; Sergio Antonio DraibeVI; Lilian CuppariVII

IPós-Doutorado (Professora do Programa de Pós-Graduação em Nutrição da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM) Professora Adjunto Visitante da Disciplina de Nefrologia da Unifesp/EPM)

IIDoutorado (Professora Afiliada da Disciplina de Nefrologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM))

IIIMestre (Pós-Graduanda da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM))

IVDoutorado (Division of Renal Medicine and Baxter Novum, Centre for Molecular Medicine and Centre for Gender Medicine, Karolinska Institutet, Stockholm, Sweden)

VDoutora (Pós-Graduando da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM))

VIPós-Doutorado (Professor Associado da Disciplina de Nefrologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM))

VIIDoutora (Professora Afiliada da Disciplina de Nefrologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM))

Correspondência Correspondência para: Maria Ayako Kamimura Universidade Federal de São Paulo, SP, Brasil Karolinska Institutet, Estocolmo, Suécia Rua Pedro de Toledo, nº 282 São Paulo, SP, Brasil. CEP: 04039-000 Tel: (11) 5904-8499. Fax: (11) 5572-1862 E-mail: m.kamimura@uol.com.br

RESUMO

INTRODUÇÃO: As complicações cardiovasculares permanecem como a principal causa de mortalidade nos pacientes portadores de doença renal crônica (DRC). A adiponectina é uma proteína produzida pelo tecido adiposo que apresenta importante propriedade cardioprotetora. O nosso objetivo foi investigar os determinantes dos níveis de adiponectina nos pacientes com DRC.

MÉTODOS: Este estudo prospectivo observacional incluiu 98 pacientes [taxa de filtração glomerular (TFG) 36,1+-14,4 ml/min; 56,5+-10,4 anos; 63% homens; 31% diabéticos e índice de massa corporal (IMC) 27,1+-5,2 kg/m2]. A avaliação da adiponectina (teste imunoenzimático), dos parâmetros laboratoriais, do estado nutricional (avaliação global subjetiva), da gordura corporal total (absortometria de raios-x de dupla energia) e da gordura abdominal visceral e subcutânea (tomografia computadorizada) foi realizada no início e após 12 meses.

RESULTADOS: A adiponectina correlacionou-se com a TFG (r = -0,45; p < 0,001), a proteinúria (r = 0,21; p = 0,04), o IMC (r = -0,33; p < 0,01) e a gordura visceral (r = -0,49; p < 0,001). Na análise de regressão múltipla, os determinantes das concentrações de adiponectina foram o sexo (feminino β = 3,8; p < 0,01), a idade (β = 0,14; p = 0,03), a TFG (β = -0,15; p < 0,01) e a gordura visceral (β = -0,04; p < 0,001) (R2 = 0,41). Após 12 meses, a progressão da DRC foi evidenciada pela diminuição da TFG (-1,6+-6,3 ml/min; p = 0,01) e aumento da proteinúria (0,3+-0,8 g/d; p < 0,01). Houve um aumento da gordura visceral de 97+-73 cm2 para 111+-82 cm2 (p < 0,001) e concomitante redução dos níveis de adiponectina, de 27,6+-7,5 mg/l para 22,2+-11,6 mg/l (p < 0,001). O peso corporal, o IMC, a gordura corporal total e a gordura abdominal subcutânea não se alteraram neste período. Ajustando pelos fatores associados à adiponectina, observamos que somente o acúmulo de gordura visceral ao longo do tempo determinou a redução nos níveis de adiponectina (β = -0,04; p = 0,025; R2 = 0,21).

CONCLUSÃO: A idade, o sexo, a função renal e a gordura visceral estiveram independentemente associados com os níveis de adiponectina nos pacientes com DRC na fase não dialítica. No entanto, a mudança da gordura visceral foi o único preditor das variações nos níveis de adiponectina ao longo de 12 meses.

Palavras-chave: adipocinas, adiponectina, insuficiência renal crônica, obesidade, obesidade abdominal.

Introdução

A adiponectina é o mais abundante peptídeo produzido pelo tecido adiposo. Esta adipocina tem papel regulador da sensibilidade à ação da insulina, além de sua importante propriedade antiaterogênica e anti-inflamatória.1 Em contraste com as demais adipocinas, a expressão e a secreção da adiponectina no tecido adiposo é inversamente proporcional à quantidade de gordura corporal.2

Nos pacientes com doença renal crônica (DRC), sabe-se que a perda da função renal resulta em aumento das concentrações de adiponectina. Yilmaz et al.3 demonstraram que os níveis de adiponectina acumulam gradativamente conforme ocorre a redução da taxa de filtração glomerular. Vários estudos, de fato, mostram consistentemente que a concentração sérica de adiponectina encontra-se significativamente elevada nos pacientes portadores de DRC.4,5 No entanto, apesar da propriedade cardioprotetora atribuída à adiponectina, as complicações cardiovasculares permanecem como a principal causa de mortalidade nesta população, sendo responsáveis por mais de 50% dos óbitos.6 Desta forma, investigar os determinantes dos níveis de adiponectina nos pacientes com DRC é importante para compreender a relação controversa existente entre esta adipocina e a mortalidade, que é extremamente elevada desde os estágios mais precoces da DRC.

O presente estudo teve como objetivo avaliar os determinantes dos níveis de adiponectina e de suas mudanças ao longo de 12 meses em pacientes na fase não dialítica da DRC.

Métodos

Pacientes

Este estudo prospectivo observacional de 12 meses incluiu 98 pacientes com DRC na fase não dialítica acompanhados no ambulatório de tratamento conservador. Os critérios de exclusão para o estudo foram: idade < 18 anos, amputação de membros, ascite, hepatite, presença de doenças malignas, uso de imunossupressores e/ou glicocorticoides. Todos os pacientes eram instruídos a consumirem rotineiramente uma dieta contendo 0,6 a 0,8 g/kg/dia de proteínas e 30 a 35 kcal/kg/dia conforme recomendações do guia de condutas K-DOQ.7

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade e o termo de consentimento foi obtido por todos os participantes do estudo.

Exames laboratoriais

Os seguintes parâmetros laboratoriais foram analisados no soro após jejum de 12 horas: creatinina, ureia, glicose, albumina (verde de bromocresol) e proteína C-reativa de alta sensibilidade (imunoquimioluminescência). A adiponectina foi determinada pelo método ELISA (Linco® Research, USA) em soro estocado a -70ºC. A proteinúria foi medida em urina de 24 horas e a taxa de filtração glomerular foi estimada pela equação simplificada do MDRD.8

Estado nutricional e composição corporal

Os pacientes foram pesados com roupas leves e sem sapatos em uma balança eletrônica (Filizola®, SP, Brasil). O índice de massa corporal (IMC) foi calculado como peso dividido pela estatura ao quadrado (kg/m2). A avaliação global subjetiva (AGS) de 7 escalas foi utilizada para a avaliação do estado nutricional.9 A gordura corporal total foi avaliada pela absortometria de raios-x de dupla energia (Lunar® Radiation Corporation Madison, WI, USA) e a gordura abdominal (visceral e subcutânea) foi medida pela tomografia computadorizada na altura das vértebras L4-L5 (Helical Picker® PQ 5000 Cleveland, Ohio, USA).

Análise estatística

Os resultados estão expressos em média e desvio-padrão, mediana e interquartis ou proporções. Para as análises comparativas, foram empregados o teste t de Student pareado ou independente para as variáveis com distribuição normal e os testes de Mann-Whitney ou Wilcoxon para as variáveis sem distribuição normal. O teste de Qui-quadrado foi utilizado para a comparação das variáveis categóricas. O coeficiente de correlação de Pearson foi utilizado para avaliar a associação entre as variáveis, sendo que as variáveis sem distribuição normal foram transformadas em logaritmo. Análises de regressão linear múltipla foram conduzidas com o intuito de verificar os determinantes das concentrações de adiponectina e os fatores independentemente associados com as variações dos seus níveis ao longo de 12 meses.

As variáveis com resultados significantes no teste de correlação simples ou que poderiam influenciar os níveis de adiponectina foram incluídas nos modelos de regressão. Valores de p < 0,05 foram considerados como estatisticamente significantes. As análises foram conduzidas com o uso do programa SPSS para Windows versão 16 (SPSS Inc., Chicago, IL, USA).

Resultados

Análise transversal

A idade dos pacientes variou de 28 a 79 anos (56,5 ± 10,4 anos), houve predominância de homens (63%) e 31% dos pacientes apresentavam diabetes. As causas da DRC foram nefroesclerose hipertensiva (27%), nefropatia diabética (23%), nefropatia túbulo-intersticial (12%), glomerulonefrite (8%), indeterminada (7%) e outras (22%). Níveis de proteína C-reativa indicativos de estado inflamatório (> 0,50 mg/dl) estavam presentes em 35% dos pacientes e níveis indicativos de risco cardiovascular (> 0,11 mg/dl) em 78% dos pacientes. A maioria dos pacientes (79%) era eutrófico, de acordo com a avaliação global subjetiva. Valores de IMC > 25 kg/m2 foram observados em 60% dos pacientes, dos quais 46% apresentavam valores > 30 kg/m2. Apenas três pacientes apresentaram IMC inferior a 18,5 kg/m2. As principais características nutricionais e laboratoriais encontram-se na Tabela 1.

Os níveis de adiponectina foram mais elevados nas mulheres em relação aos homens (31 ± 6,6 mg/l vs. 25,6 ± 7,2 mg/l; p < 0,001). As mulheres apresentaram maior quantidade de gordura corporal total (38,4 ± 9,3% vs. 25 ± 6,8%; p < 0,001) e gordura abdominal subcutânea (234 ± 133 cm2vs. 155 ± 66 cm2; p = 0,002), porém, menor quantidade de gordura visceral (69 ± 61 cm2vs. 113 ± 75 cm2; p = 0,002) quando comparadas aos homens. A adiponectina correlacionou-se inversamente com o IMC (r = -0,33; p < 0,01), com a gordura visceral (r = -0,49; p < 0,001) e com a taxa de filtração glomerular (r = -0,45; p < 0,001) e positivamente com a creatinina sérica (r = 0,31; p = 0,002) e a proteinúria (r = 0,21; p = 0,04). As correlações da adiponectina com a taxa de filtração glomerular e a gordura visceral estão ilustradas na Figura 1A-B, respectivamente. O modelo de regressão linear que melhor descreveu os determinantes das concentrações de adiponectina no início do estudo encontra-se na Tabela 2. A inflamação, o estado nutricional e a presença de diabetes não estiveram associados com os níveis de adiponectina nestes pacientes.


Análise prospectiva

As características dos pacientes no início e após 12 meses estão demonstradas na Tabela 1. Durante o período de acompanhamento, uma progressão da DRC foi evidenciada pela diminuição da taxa de filtração glomerular e aumento da creatinina sérica e da proteinúria. Foi observado acúmulo da gordura visceral e concomitante redução dos níveis de adiponectina tanto nos homens como nas mulheres. O peso, o IMC, a gordura corporal total e a gordura abdominal subcutânea não se alteraram neste período. O coeficiente de correlação (r) entre as variações de adiponectina e de gordura visceral foi -0,20 (p = 0,05). As mudanças nos níveis de adiponectina não se correlacionaram com os parâmetros de função renal. Ajustando pelos determinantes da adiponectina, apenas as mudanças na gordura visceral estiveram independentemente associadas com as mudanças nos níveis de adiponectina (Tabela 3).

Discussão

O presente estudo mostrou que o sexo, a idade, a função renal e a gordura visceral foram os determinantes dos níveis de adiponectina nos pacientes com DRC na fase não dialítica e a variação na gordura visceral foi um preditor da variação nos níveis de adiponectina ao longo de 12 meses.

Durante muitos anos, acreditou-se que o tecido adiposo exercia um papel passivo na homeostase energética corpórea, sendo responsável pelo armazenamento do excesso de energia na forma de triglicérides e liberação, na forma de ácidos graxos, para utilização conforme a necessidade. A identificação do tecido adiposo como fonte do hormônio leptina, em 1994, deu início a uma nova era de pesquisa, enfocando o papel endócrino das células adiposas.10 Atualmente, sabe-se que o tecido adiposo se comunica com os demais tecidos, órgãos e sistemas, via síntese e secreção de uma coletividade de moléculas denominadas adipocinas, que apresentam importantes atividades biológicas.11 Dentre as adipocinas, a adiponectina particularmente tem despertado crescente interesse nos estudos em pacientes portadores de DRC, já que esta proteína exerce um papel protetor nos processos ateroscleróticos, inibindo a adesão de monócitos ao endotélio vascular.12

No entanto, na vigência de falência renal, que resulta em acúmulo de adiponectina, a compreensão do seu papel torna-se ainda mais complexa, o que reflete em achados controversos na literatura sobre os reais efeitos da adiponectina nos pacientes com DRC.13-15 Enquanto alguns pesquisadores defendem o papel protetor da adiponectina,16,17 outros não corroboram com tal conceito.18,19 Ainda, a literatura sugere que, dentre as adiponectinas de baixo, médio e alto peso molecular, o efeito protetor desta adipocina parece estar associado a sua fração de maior peso molecular,20,21 o que indica a necessidade de investigações futuras sobre a adiponectina em seus diferentes pesos moleculares na população com DRC.

Embora a síntese de adiponectina ocorra exclusivamente no tecido adiposo, a sua relação com a gordura corporal total é inversa.2 No presente estudo, uma correlação inversa foi observada com o IMC e com a gordura visceral. Acredita-se que a citocina TNF-α, que tem a sua síntese aumentada em condições de excesso de gordura, inibe a produção da adiponectina pelo tecido adiposo.1 No entanto, apesar da recente compreensão de alguns aspectos fisiológicos das adipocinas, até o momento, os mecanismos exatos envolvidos na produção da adiponectina pelos adipócitos permanecem sob investigação.

O tecido adiposo, enquanto órgão secretor, apresenta distintas peculiaridades, a começar pela sua constituição estrutural. O tecido adiposo é composto por diferentes células, como adipócitos maduros, pré-adipócitos, fibroblastos e macrófagos, que podem apresentar diferentes participações na função secretora. Além disso, o tecido adiposo confere ampla e variada distribuição orgânica e que nem sempre apresenta ligação entre si.22

E, finalmente, a capacidade metabólica do tecido adiposo pode variar em função da sua localização, visceral ou subcutânea, podendo contribuir de forma mais ou menos intensa para a secreção das adipocinas.23 Postula-se que a gordura visceral apresenta duas a três vezes maior secreção de citocinas pró-inflamatórias em relação à gordura subcutânea.24 Estudos recentes demonstraram que a expressão de citocinas pró-inflamatórias25,26 e a infiltração de células imunocompetentes26 encontram-se mais acentuadas no tecido adiposo subcutâneo e visceral de pacientes com DRC em relação ao de indivíduos saudáveis. Teplan et al.27 demonstraram que a expressão de RNAm do TNF-α, o antígeno CD68, a proteína quimiotática de monócitos-1 e o receptor-1 da adiponectina encontravam-se em maior quantidade na gordura visceral de pacientes portadores de DRC, particularmente naqueles com obesidade. Além disso, os autores demonstram que a expressão de citocinas era significantemente maior na gordura visceral em relação ao subcutâneo.

Assim, embora a contribuição do tecido adiposo no universo da inflamação sistêmica ainda não esteja totalmente elucidada,28 é possível supor que o mecanismo envolvendo a inflamação seja o mais plausível para explicar o aumento da gordura visceral como o principal determinante dos níveis circulantes de adiponectina observada no presente estudo.

Os achados sobre a gordura visceral na população com DRC, utilizando métodos padrão-ouro, como a tomografia computadorizada ou ressonância magnética, têm sido baseados em estudos de associação.29-34 Odamaki et al.31 mostraram que pacientes em hemodiálise apresentavam maior área de gordura visceral medida pela tomografia computadorizada quando comparados a indivíduos saudáveis. Ademais, os pesquisadores encontraram que o excesso de gordura visceral estava associado a alterações no perfil lipídico. Estas associações foram confirmadas por outros investigadores que, além disso, demonstraram uma associação direta entre gordura visceral e prevalência de aterosclerose da carótida, nos pacientes em hemodiálise.32,33 Gohda et al.34 mostraram que, além de estar diretamente associada à resistência insulínica, a gordura visceral esteve intimamente relacionada à presença de inflamação nos pacientes em hemodiálise, uma vez que a gordura visceral foi um determinante independente dos níveis de proteína C-reativa nesses pacientes. Um recente estudo com pacientes em hemodiálise mostrou que a gordura visceral foi o mais importante determinante das concentrações de adiponectina de alto peso molecular.35

Um acúmulo espontâneo de gordura visceral tem sido evidenciado nos poucos estudos prospectivos envolvendo pacientes na fase não dialítica36 e pacientes em diálise peritoneal.37,38 No entanto, a associação das mudanças na gordura visceral com alterações de marcadores cardiometabólicos não foi investigada em tais estudos. No nosso conhecimento, este é o primeiro estudo que mostra a associação entre as alterações na gordura visceral e as variações nos níveis de adiponectina na população com DRC. Os resultados deste trabalho podem contribuir para a melhor compreensão do missing-link entre a obesidade abdominal e as complicações cardiovasculares nos pacientes portadores de DRC.

Este estudo apresenta limitação em relação ao tamanho da amostra, relativamente pequena. No entanto, trata-se de uma amostra representativa da população com DRC na fase não dialítica em termos de idade, distribuição do sexo, proporção de pacientes diabéticos e estado nutricional. A vantagem conferida ao estudo é o desenho prospectivo e o uso de metodologias adequadas consideradas padrões de referência.

No presente estudo, concluímos que a idade, o sexo, a função renal e a gordura visceral são importantes determinantes dos níveis de adiponectina nos pacientes com DRC na fase não dialítica. No entanto, o acúmulo de gordura visceral ao longo do tempo é o preditor de redução nos níveis de adiponectina nestes pacientes. As implicações deste achado em desfechos clínicos, incluindo eventos cardiovasculares e mortalidade, necessitam ser investigadas. De qualquer forma, o resultado deste estudo chama a atenção para a necessidade de ações preventivas e terapêuticas da obesidade visceral já nos estágios iniciais da DRC.

Data de submissão: 04/11/2011

Data de aprovação: 02/05/2012

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    Maria Ayako Kamimura
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2012

    Histórico

    • Recebido
      04 Nov 2011
    • Aceito
      02 Maio 2012
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