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Perfil de utilização de medicamentos por idosos em área urbana do Nordeste do Brasil

Medication use patterns among elderly people in urban area in Northeastern Brazil

Resumos

OBJETIVO: Descrever o perfil de utilização de medicamentos por idosos residentes em áreas de diferentes níveis socioeconômicos de um centro urbano do Nordeste do Brasil. MÉTODOS: Inquérito domiciliar entre idosos (60 anos ou mais) da cidade de Fortaleza, Ceará, selecionados por amostragem sistemática em múltiplos estágios e estratificada por nível socioeconômico (melhor = área central; intermediário = área intermediária; pior = área periférica). Estatística descritiva foi apresentada pelas percentagens dos respectivos totais para variáveis categóricas e médias (± desvio-padrão) para variável contínua. Realizou-se análise multivariada para identificação de fatores associados a uso de medicamentos prescritos; não-prescritos e inadequados. RESULTADOS: A maioria dos idosos (80,3% na área central) usava pelo menos um medicamento prescrito. Mais de um terço (37,4%) na área periférica usava pelo menos um não-prescrito, e quase 20% pelo menos um inadequado. O uso de medicamentos prescritos foi associado à idade avançada (razão de chances - RR=1,7; IC 95%: 1,1-2,8); sexo masculino (RR=0,5; IC 95%: 0,3-0,7); visitas a serviços de saúde (RR=2,5; IC 95%: 1,9-3,1); doenças crônicas (RR=4,0; IC 95%: 2,5-6,2); e nível socioeconômico (RR=2,0; IC 95%: 1,5-2,6). O uso de medicamentos não prescritos foi associado a comprometimento funcional (RR=1,5; IC 95%: 1,1-2,2) e nível socioeconômico (RR=0,6; IC 95%: 0,5-0,8). O uso de medicamentos inadequados foi associado principalmente a sexo masculino (RR=0,4; IC 95%: 0,2-0,8); doenças crônicas (RR=2,0; IC 95%: 1,2-3,3), e nível socioeconômico (RR=0,7; IC 95%: 0,5-0,9). CONCLUSÕES: As proporções de idosos usando medicamentos prescritos, não-prescritos e inadequados foram significativas, havendo desigualdades particularmente entre aqueles de diferentes níveis socioeconômicos. Os resultados apontam para a necessidade de programas para otimizar o acesso e racionalizar o uso de medicamentos entre idosos no Brasil.

Uso de medicamentos; Idoso; Saúde do idoso; Prescrição de medicamentos; Fatores socioeconômicos; Farmacoepidemiologia


OBJECTIVE: To identify medication use patterns among elderly people residing in areas with different socioeconomic status in the city of Fortaleza, Brazil. METHODS: A total of 668 elderly (aged 60 years or older) residing in the city of Fortaleza, Ceará, Brazil, selected from a multistage random sampling stratified by socioeconomic status (higher, intermediate, and lower areas), were interviewed in a household survey. Descriptive statistics for dichotomous variables were presented as percent of the respective totals, and those for continuous variables as mean ± SD. Multivariate analyses were performed to identify factors associated with the use of prescription, non-prescription and inappropriate) drugs. RESULTS: Most (80.3% in the hgiher area) were on at least one non- prescription drug. More than one third (37.4%) were on at least one non- prescription drug and nearly 20% used at least one inappropriate in the lower area. PD use was associated with advanced age (OR=1.7, 95% CI=1.1-2.8); male sex (OR=0.5, 95% CI=0.3-0.7); health service visits (OR=2.5, 95% CI=1.9-3.1); chronic diseases (OR=4.0, 95% CI=2.5-6.2); and higher socioeconomic status (OR=2.0, 95% CI=1.5-2.6).Non- prescription drug use was associated with disability (OR=1.5, 95% CI=1.1-2.2), and higher socioeconomic status (OR=0.6; 95% CI=0.5-0.8). Inappropriate drugs use was mainly associated with male sex (OR=0.4, 95% CI=0.2-0.8); chronic diseases (OR=2.0, 95% CI=1.2-3.3); and higher socioeconomic status (OR=0.7, 95% CI=0.5-0.9). CONCLUSIONS: The proportions of elderly using prescription, non- prescription and inappropriate drugs were remarkable and inequalities were seen particularly among those from different socioeconomic status. These results emphasize the need for strategies to optimize the access and rationalize the use of drugs for elderly people in Brazil.

Drug utilization; Aged; Aging health; Prescriptions, drug; Socioeconomic factors; Pharmacoepidemiology


ARTIGOS ORIGINAIS

Perfil de utilização de medicamentos por idosos em área urbana do Nordeste do Brasil

Medication use patterns among elderly people in urban area in Northeastern Brazil

João Macêdo Coelho FilhoI; Luiz Francisco MarcopitoII; Adauto CasteloII

IFaculdade de Medicina. Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE, Brasil

IIEscola Paulista de Medicina. Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência João Macêdo Coelho Filho Rua Eduardo Garcia, 650/ 1400 60150-100 Fortaleza, CE, Brasil E-mail: jmacedocoelho@yahoo.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Descrever o perfil de utilização de medicamentos por idosos residentes em áreas de diferentes níveis socioeconômicos de um centro urbano do Nordeste do Brasil.

MÉTODOS: Inquérito domiciliar entre idosos (60 anos ou mais) da cidade de Fortaleza, Ceará, selecionados por amostragem sistemática em múltiplos estágios e estratificada por nível socioeconômico (melhor = área central; intermediário = área intermediária; pior = área periférica). Estatística descritiva foi apresentada pelas percentagens dos respectivos totais para variáveis categóricas e médias (± desvio-padrão) para variável contínua. Realizou-se análise multivariada para identificação de fatores associados a uso de medicamentos prescritos; não-prescritos e inadequados.

RESULTADOS: A maioria dos idosos (80,3% na área central) usava pelo menos um medicamento prescrito. Mais de um terço (37,4%) na área periférica usava pelo menos um não-prescrito, e quase 20% pelo menos um inadequado. O uso de medicamentos prescritos foi associado à idade avançada (razão de chances - RR=1,7; IC 95%: 1,1-2,8); sexo masculino (RR=0,5; IC 95%: 0,3-0,7); visitas a serviços de saúde (RR=2,5; IC 95%: 1,9-3,1); doenças crônicas (RR=4,0; IC 95%: 2,5-6,2); e nível socioeconômico (RR=2,0; IC 95%: 1,5-2,6). O uso de medicamentos não prescritos foi associado a comprometimento funcional (RR=1,5; IC 95%: 1,1-2,2) e nível socioeconômico (RR=0,6; IC 95%: 0,5-0,8). O uso de medicamentos inadequados foi associado principalmente a sexo masculino (RR=0,4; IC 95%: 0,2-0,8); doenças crônicas (RR=2,0; IC 95%: 1,2-3,3), e nível socioeconômico (RR=0,7; IC 95%: 0,5-0,9).

CONCLUSÕES: As proporções de idosos usando medicamentos prescritos, não-prescritos e inadequados foram significativas, havendo desigualdades particularmente entre aqueles de diferentes níveis socioeconômicos. Os resultados apontam para a necessidade de programas para otimizar o acesso e racionalizar o uso de medicamentos entre idosos no Brasil.

Descritores: Uso de medicamentos. Idoso. Saúde do idoso. Prescrição de medicamentos. Fatores socioeconômicos. Farmacoepidemiologia.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To identify medication use patterns among elderly people residing in areas with different socioeconomic status in the city of Fortaleza, Brazil.

METHODS: A total of 668 elderly (aged 60 years or older) residing in the city of Fortaleza, Ceará, Brazil, selected from a multistage random sampling stratified by socioeconomic status (higher, intermediate, and lower areas), were interviewed in a household survey. Descriptive statistics for dichotomous variables were presented as percent of the respective totals, and those for continuous variables as mean ± SD. Multivariate analyses were performed to identify factors associated with the use of prescription, non-prescription and inappropriate) drugs.

RESULTS: Most (80.3% in the hgiher area) were on at least one non- prescription drug. More than one third (37.4%) were on at least one non- prescription drug and nearly 20% used at least one inappropriate in the lower area. PD use was associated with advanced age (OR=1.7, 95% CI=1.1-2.8); male sex (OR=0.5, 95% CI=0.3-0.7); health service visits (OR=2.5, 95% CI=1.9-3.1); chronic diseases (OR=4.0, 95% CI=2.5-6.2); and higher socioeconomic status (OR=2.0, 95% CI=1.5-2.6).Non- prescription drug use was associated with disability (OR=1.5, 95% CI=1.1-2.2), and higher socioeconomic status (OR=0.6; 95% CI=0.5-0.8). Inappropriate drugs use was mainly associated with male sex (OR=0.4, 95% CI=0.2-0.8); chronic diseases (OR=2.0, 95% CI=1.2-3.3); and higher socioeconomic status (OR=0.7, 95% CI=0.5-0.9).

CONCLUSIONS: The proportions of elderly using prescription, non- prescription and inappropriate drugs were remarkable and inequalities were seen particularly among those from different socioeconomic status. These results emphasize the need for strategies to optimize the access and rationalize the use of drugs for elderly people in Brazil.

Keywords: Drug utilization. Aged. Aging health. Prescriptions, drug. Socioeconomic factors. Pharmacoepidemiology.

INTRODUÇÃO

Medicamentos representam um dos itens mais importantes da atenção à saúde do idoso. Pessoas com idade avançada tendem a usar mais produtos farmacêuticos e apresentam particularidades farmacocinéticas e farmacodinâmicas que as tornam particularmente vulneráveis a efeitos adversos. O conhecimento do perfil de utilização de medicamentos pela população geriátrica é fundamental para o delineamento de estratégias de prescrição racional de fármacos entre esse segmento etário.

Estudos farmacoepidemiológicos entre idosos têm sido publicados, inclusive no Brasil.1,3,8,9,11,13 Grande parte dos mesmos apresenta como fator limitante a seleção de amostras de conveniência,1,3,9,11 pouco representativas da população geriátrica. Informações de base populacional acerca de uso de medicamentos entre idosos brasileiros são oriundas de investigações desenvolvidas na região Sudeste,8,13 havendo necessidade de estudos mais abrangentes, incluindo outras áreas do País.

O presente estudo teve como objetivo descrever o perfil geral de utilização de medicamentos e identificar fatores associados a uso dos mesmos por idosos residentes em um centro urbano do Nordeste do Brasil.

MÉTODOS

O presente estudo representa parte de inquérito domiciliar entre pessoas com 60 anos de idade ou mais residentes na cidade de Fortaleza, Ceará.2 Optou-se por estudar os idosos pertencentes a diferentes estratos socioeconômicos, a fim de que se podesse contemplar a heterogeneidade da população idosa naquela cidade. Adotou-se método que possibilitasse a estratificação da área urbana de Fortaleza em diferentes segmentos socioeconômicos. Tomou-se como ponto de partida a divisão da cidade, de acordo com o IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em cinco distritos. Esses distritos foram ordenados de acordo com um conjunto de indicadores, obtidos de resultados do Censo Brasileiro de 1991, quais sejam: renda do chefe da família; proporção de casas com saneamento; nível educacional; habitação (número de cômodos dos domicílios); e proporção de pessoas com 60 anos de idade ou mais. Para cada indicador foi atribuído um peso e uma ordenação final foi obtida a partir da soma da posição de cada distrito segundo tais indicadores. Isto possibilitou a identificação do distrito com melhor, intermediário, e pior nível socioeconômico, referidos aqui como área central, intermediária e periférica, respectivamente.

Em seguida, foram identificados os bairros de cada distrito e, por sua vez, selecionados três dos mesmos, ou seja, o de pior, intermediário, e de melhor nível socioeconômico nos distritos. Dentro dos bairros, procedeu-se à identificação dos setores censitários (áreas contínuas, situadas em um único quadrante urbano ou rural, definidas pelo IBGE como unidades territoriais de coleta de dados), sendo excluídas as áreas especiais. Estas são aquelas cujas características são discrepantes do padrão dos setores censitários de um determinado distrito (favelas, aldeias indígenas; vilas militares; hotéis; conventos etc). Os setores censitários de cada bairro foram selecionados por processo aleatório e proporcional ao número de domicílios de cada setor.

Os domicílios foram selecionados por processo de amostragem probabilístico e sistemático, utilizando-se intervalo de seleção de domicílios variável com o tamanho do setor censitário selecionado. Em cada setor, foram numerados todos os quarteirões e suas respectivas faces (ruas e vilas), a serem percorridas sistematicamente pelos entrevistadores, seguindo procedimento adotado pelo IBGE. Com base nos recursos disponíveis, optou-se por estudar, aproximadamente, 0,5%, 1,5% e 2,0% do total de idosos, respectivamente, dos distritos de Fortaleza, Parangaba e Antônio Bezerra. A menor proporção de idosos incluídos do distrito de Fortaleza deveu-se à maior dificuldade operacional em entrevistar indivíduos de classe social alta, muitos deles residentes em casas ou condomínios com grande aparato de segurança.

As entrevistas foram realizadas por uma equipe previamente treinada, composta por entrevistadoras com nível superior e com experiência prévia de trabalho de campo em censos do IBGE e pesquisas na área materno-infantil. Utilizou-se questionário estruturado contendo duas seções: uma relacionada a dados gerais sobre o idoso e outra sobre medicamentos em uso. Todos os questionários preenchidos foram periodicamente recolhidos e sistematicamente checados por supervisor de campo. Dúvidas, inconsistências e itens não preenchidos foram discutidos com a entrevistadora e, caso necessário, realizava-se nova entrevista ou complementação da informação com o idoso e/ou família. Somente após três tentativas sem sucesso de entrevista com o idoso é que se procedia à sua exclusão.

Foi utilizado o método de inventário em domicílio, assumido como o mais acurado para obtenção de informações sobre uso de medicamentos.7 Participantes do estudo foram interrogados acerca de toda medicação em uso, definida operacionalmente como aquela utilizada pelo entrevistado nos últimos sete dias que antecederam à entrevista. Quando o idoso não estava apto a responder perguntas e/ou era portador de disfunção cognitiva, as informações eram conferidas e/ou colhidas de pessoas que mantinham contato regular com o idoso, particularmente cônjuges e/ou cuidadores. As entrevistadoras foram orientadas a solicitar rotineiramente bulas, rótulos ou embalagens de todos os medicamentos, para: 1) assegurar a acurácia dos nomes de medicamentos fornecidos; 2) evitar omissão, em geral por esquecimento, de medicamentos em uso.

Os medicamentos foram classificados em categorias terapêuticas, de acordo com seu princípio ativo, tendo como referência o Anatomical-Therapeutical-Chemical Classification System (ATC).10 O grupo de medicamentos "trato alimentar e metabolismo", pertencente ao primeiro nível dessa classificação, foi aqui apresentado com proporções de medicamentos para "trato alimentar" e "metabolismo" separadamente, para melhor conhecimento das estimativas desses grupos. A classificação pela ATC envolveu uma avaliação qualitativa dos medicamentos pelo investigador principal.

Os produtos em uso, com mais de um princípio ativo, foram enquadrados na categoria terapêutica do principal princípio; produtos com diferentes ações farmacológicas foram classificados levando-se em consideração a condição para a qual foram prescritos ou utilizados (ex.: ácido acetilsalicílico em pacientes com insuficiência coronariana foi classificado como antiagregante plaquetário e não como analgésico).

As variáveis foram assim definidas:

Medicamentos prescritos: são todos aqueles originalmente prescritos por médico. Essa definição contempla situações em que é permitida a renovação pelo enfermeiro de prescrição originalmente efetuada pelo médico, como, por exemplo, em casos de tratamento assistido de tuberculose.

Medicamentos não-prescritos: são todos aqueles usados por iniciativa própria, ou por recomendação ou indicação de outros que não um profissional médico. Incluem-se os medicamentos sugeridos por amigos, parentes, balconista de farmácia, entre outros.

Medicamentos inadequados: são todos aqueles que deveriam ser evitados (independente de dose, duração do tratamento ou circunstâncias clínicas), tanto por não serem efetivos, como por apresentarem risco desnecessariamente alto para pessoas idosas (risco excedendo benefício). Como o número de medicamentos inadequados é um indicador de qualidade da prescrição médica para o idoso, foram incluídos somente os medicamentos prescritos. Foram avaliados através da versão modificada do critério de Beers.12 Foi mantida, no entanto, metildopa – que constava na lista original de Beers, mas que fora excluída da versão modificada – por fazer parte da Rename (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais). Metildopa é considerada inapropriada em face de seus freqüentes efeitos adversos em nível central e atual disponibilidade de anti-hipertensivos bem mais seguros. Foram introduzidos agentes laxativos catárticos na lista de medicamentos inadequados.

Os dados foram sumarizados por análise descritiva, sendo apresentados para cada estrato socioeconômico. Utilizaram-se percentagens para variáveis categóricas, e médias para variável contínua. Análise multivariada (regressão logística múltipla) foi conduzida para identificar fatores que se correlacionavam com o uso de medicamentos prescritos; medicamentos não-prescritos e medicamentos inadequados, respectivamente, assumidos como variáveis dependentes. Variáveis independentes selecionadas para análise de regressão logística foram aquelas com p<0,25 na análise univariada. Na análise multivariada, foram consideradas variáveis significantes aquelas com p<0,05.5

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.

RESULTADOS

Foram entrevistados 697 idosos nos três diferentes distritos da cidade de Fortaleza. Destes, 29 foram excluídos devido a problemas técnicos no preenchimento de seus respectivos questionários ou por não localização do idoso. Dos 668 idosos que configuraram a amostra, 228, 234 e 206 pertenciam, respectivamente, às áreas com melhor (central); intermediário, e pior (periférica) nível socioeconômico.

A maior parte dos idosos nos diferentes estratos socioeconômicos era composta por "idosos jovens", ou seja, com menos de 70 anos de idade, exceto na área central, onde predominaram idosos com 70 anos ou mais (54%). A maioria (mais de 60%) dos idosos entrevistados pertencia ao sexo feminino (Tabela 1).

A proporção de idosos usando pelo menos um medicamento prescrito foi de 80,3% na área central; 67,5% na área intermediária; e 60,7% na área periférica. Na área central, 13,6% dos idosos usavam cinco ou mais medicamentos prescritos, sendo essa proporção de 7,7 e 5,4%, nas áreas intermediária e periférica, respectivamente. Por sua vez, a proporção de idosos usando pelo menos um medicamento não-prescrito foi de 21,5% na área central; 25,6% na área intermediária e 37,4% na área periférica. Uma proporção de 17,0% dos idosos da área periférica usava pelo menos dois medicamentos não-prescritos, enquanto nas áreas central e intermediária essa proporção foi, respectivamente, 7,0% e 8,1% (Tabela 2). Quanto à proporção de idosos usando pelo menos um medicamento considerado inadequado, observou-se 13,1% na área central; 17,1% na área intermediária e 18,9% na área periférica.

O número médio de medicamentos prescritos em uso por idoso foi 2,3 na área central; 1,5 na intermediária e 1,3 na periférica. Em relação a medicamentos não-prescritos, o uso por idoso foi de 0,3 na área central; 0,3 na intermediária e 0,6 na periférica. Já o número médio de medicamentos inadequados em uso por idoso foi de 0,1, sendo igual nos três estratos (Tabela 3).

Verificou-se número médio de medicamentos prescritos em uso por idoso maior entre aqueles do sexo feminino e com idade de 75 anos ou mais nos diferentes estratos socioeconômicos. O mesmo, no entanto, não foi observado quanto a medicamentos não-prescritos e inadequados. Houve tendência a aumento do número de medicamentos prescritos a partir dos 80 anos de idade nas áreas central e intermediária, porém não na área periférica, onde o número de medicamentos prescritos em uso diminui nessa faixa etária (dados não mostrados em tabela).

A farmácia foi o principal local de dispensação de medicamentos prescritos (86,3% dos medicamentos), o que foi verificado nos três níveis socioeconômicos. Na área periférica, o posto de saúde e o hospital foram locais onde quase 30% dos medicamentos foram dispensados, fato observado em menor escala na área intermediária (11,5% dos medicamentos) e bem menos na área central (3,8%) (dados não mostrados em tabela).

A maioria dos idosos que estavam em uso de medicamentos não-prescritos tiveram indicação de algum membro da família. Este foi particularmente o caso entre os idosos da área central (74,7%). As proporções relativas aos idosos das áreas intermediária e periférica foram, respectivamente, 55,8 e 62,1%. Observou-se, subseqüentemente, a indicação pelo farmacêutico ou balconista, ocorrendo em 7,8% dos idosos da área central; 7,9% da área intermediária e 17,4% da periférica.

Benzodiazepínicos de longa duração foram os medicamentos inadequados com maior proporção de idosos em uso; quase 7% dos idosos estavam usando pelo menos um fármaco pertencente a esse grupo. Clopropamida foi o segundo medicamento inadequado mais freqüentemente usado, com 4% dos idosos utilizando essa droga. Em seguida, situaram-se laxantes, os quais foram encontrados em uso por 1,5% dos entrevistados. Os demais medicamentos inadequados foram encontrados em pequena proporção entre idosos (dados não mostrados em tabela).

Figuraram entre as categorias terapêuticas mais comuns: medicamentos com ação no sistema cardiovascular (29,3%); sistema nervoso central (13,5%); metabolismo (12,6%); e trato digestório (12,3%) (Tabela 4). Entre as subcategorias de medicamentos, destacaram-se os anti-hipertensivos (8,9%); vitaminas e minerais (7,0%); diuréticos (6,4%); hipnóticos e ansiolíticos (5,4%); antiinflamatórios não-hormonais (4,3%), laxativos (3,9%), beta-bloqueadores (3,8%) e analgésicos (3,6%). Medicamentos caseiros, incluindo uso de chás; lambedores, entre outros, representaram 8,1% dos itens em uso pelos entrevistados (dados não mostrados em tabela).

Na análise multivariada, três variáveis foram associadas a uso de medicamentos prescritos: visitas a serviços de saúde; relato de doença crônica; nível socioeconômico, sexo masculino e idade acima de 75 anos (Tabela 5). Com base nesses dados, as chances de uso de medicamentos prescritos cresceram com o número de visitas a serviços de saúde nos últimos seis meses, com a melhora do nível socioeconômico, entre aqueles do sexo feminino, com relato de doença crônica, e idade de 75 anos ou mais.

Na análise multivariada para medicamentos não-prescritos, obteve-se um modelo final com somente as variáveis nível socioeconômico e grau de autonomia, (Tabela 5). Assim, as chances de uso de medicamentos não-prescritos aumentaram com a piora do nível socioeconômico e com a necessidade de ajuda para realizar pelo menos uma atividade da vida diária.

Permaneceram no modelo final na análise multivariada para medicamentos inadequados: visitas a serviços de saúde; relato de doença crônica; nível socioeconômico; sexo masculino; aposentadoria e número de medicamentos prescritos (Tabela 5). As chances de uso de medicamentos inadequados aumentaram, portanto, com o número de medicamentos prescritos; com o número de visitas a serviços de saúde (de "duas a cinco vezes" para "cinco ou mais vezes", e não de "uma" para "duas a cinco vezes"; p=0,129), naqueles com relato de doença, no sexo feminino, nos aposentados e com a piora do nível socioeconômico.

DISCUSSÃO

Realizou-se inquérito domiciliar relativamente abrangente, contemplando diferentes estratos socioeconômicos da cidade de Fortaleza, Ceará. A utilização de metodologia de um inquérito mais amplo, com supervisão de campo, retornos ao domicílio e checagem sistemática dos instrumentos preenchidos asseguraram uma taxa pequena de perdas. As características sociodemográficas dos indivíduos incluídos nesse estudo refletem em geral o quadro da população idosa no Brasil,2,14 havendo maior proporção de mulheres e de idosos com idade mais avançada nas regiões com melhor nivel socioeconômico.

A maioria dos idosos nos diferentes estratos socioeconômicos usava pelo menos um medicamento prescrito. Na área central, cerca de 80% dos idosos usavam pelo menos um medicamento prescrito. Essa proporção é considerável e tem sido relatada de forma similar em estudos de outros países. Lassila et al,7 em estudo transversal com 967 idosos (65 anos ou mais) americanos, relatam que 71% usavam pelo menos um medicamento regularmente, semelhante à encontrada em investigação conduzida em população escandinava.6 Prevalências ligeiramente menores do que as observadas no presente estudo foram, no entanto, assinaladas por Woo et al14 na China, que encontrou 59,2% dos idosos (70 anos ou mais) usando medicamentos prescritos. Veras,13 em inquérito domiciliar com idosos do Rio de Janeiro, identificou que 80,1% dos entrevistados relatavam uso regular de medicamentos prescritos. Também no Rio de Janeiro, Miralles & Kimberlin8 encontraram proporções de 93,5% em Copacabana; 80,3% em Méier; e 62,9% em Santa Cruz.

A proporção de idosos, em geral, usando medicamentos prescritos foi particularmente expressiva em área com melhor nível socioeconômico. Quando se considera o nível socioeconômicomais desfavorecido, a proporção de idosos usando medicamento prescrito apresenta-se menor, ou seja, pouco mais da metade.

A proporção de idosos usando medicamentos não-prescritos, contrariamente ao observado com medicamentos prescritos, foi bem maior entre os idosos da área periférica. Mais de um terço deles usava pelo menos um medicamento não-prescrito.

A comparação dos resultados sobre medicamentos não-prescritos com aqueles de estudos conduzidos em países desenvolvidos torna-se difícil em vista de diferentes definições utilizadas. O termo correspondente em língua inglesa, non-prescription medication ou over-the-counter medication, refere ao uso de medicamento que não necessita de receita médica para adquiri-lo. Já no presente estudo, medicamento não-prescrito foi operacionalmente definido como todo aquele não prescrito por médico, o que pode incluir medicamentos para cujo uso seja ou não necessária a receita médica.

Os resultados acerca de quem fez a indicação de medicamentos não-prescritos apontam para a importância de educação dos membros da família quanto às implicações potenciais do uso não criterioso de medicamentos entre idosos. O farmacêutico apresentou também participação importante na indicação de medicamentos não-prescritos e as farmácias como grande fonte de dispensação de medicamentos nos diferentes estratos. Assim, o envolvimento do profissional de farmácia na condução de programas para uso racional de medicamentos pela população geriátrica torna-se fundamental.

O uso de medicamentos prescritos tendeu a ser maior entre idosos do sexo feminino, com idade mais avançada, bom nível socioeconômico, doenças crônicas e visitas regulares aos serviços de saúde. Em relação aos medicamentos não-prescritos, observou-se que os idosos mais desfavorecidos do ponto de vista socioeconômico tenderam mais a usá-los, assim como aqueles com comprometimento funcional. Pobreza e incapacidade estariam associados à maior tendência a uso de medicamentos não-prescritos possivelmente por acarretarem maior dificuldade no acesso a profissionais médicos e serviços de saúde, particularmente em face da carência de programas de busca ativa de pacientes e de visitas domiciliares.

Utilizando o critério de Beers modificado,12 identificou-se que o uso de medicamentos considerados inadequados para pessoas idosas foi igualmente prevalente nas diferentes áreas. Em inquérito domiciliar entre idosos americanos, utilizando-se o mesmo critério, encontrou-se proporção similar à encontrada no presente estudo, ou seja, 14% dos idosos usavam pelo menos um medicamento inadequado.13 Há que se considerar que o critério aqui utilizado pode ter subestimado a real dimensão desse problema no Brasil, tendo em vista que drogas potencialmente inadequadas e disponíveis no mercado não se encontram nele incluídas. Ademais, tal critério limita-se ao tipo de medicamento usado, não incorporando elementos importantes, como indicação, doses e tempo de tratamento.

Benzodiazepínicos de ação prolongada foram os medicamentos inadequados mais freqüentes, sendo usados por aproximadamente 7% dos idosos entrevistados. Isto reflete o alto consumo de benzodiazepínicos, descrito também na literatura brasileira.15

Os medicamentos cardiovasculares representaram a categoria terapêutica mais comumente usada, o que é explicado pela alta prevalência de doenças cardiovasculares entre a população idosa. O presente achado é consistente com outros estudos.4,6,7 Idosos apresentam freqüentemente, também, quadros de insônia, ansiedade e estados confusionais, resultando na prescrição comum de fármacos com ação no sistema nervoso central. A preocupação em relação a esse grupo de medicamentos é que pessoas idosas são reconhecidamente mais suscetíveis a efeitos adversos deles advindos.

A associação entre uso de medicamentos inadequados e variáveis como nível socioeconômico baixo, visita a serviços de saúde e uso de medicamentos prescritos comporta várias explanações. Pode refletir o desconhecimento do profissional médico em relação à prescrição de medicamentos não recomendados para idosos, como também a prescrição de medicamentos que estão mais disponíveis nos serviços públicos, muitos deles considerados inadequados (como amtriptilina, clopropamida e metildopa). O fato de não haver no Sistema Único de Saúde (SUS) um pacote de medicamentos mais adequados para uso em idosos, regularmente disponível, torna a própria visita aos serviços de saúde elemento que aumenta a chance de uso de medicamentos inadequados para esse grupo.

Algumas limitações do presente estudo devem ser consideradas. Primeiro, o fato de todo inquérito domiciliar, utilizando procedimento sistemático, estar sujeito a viéses por parte dos entrevistadores, os quais nem sempre são passíveis de controle. Segundo, em se tratando de estudo envolvendo seleção de conglomerados, as estimativas de proporções tendem a ser menos precisas do que aquelas a partir de amostras aleatórias simples. Assim, idealmente, as proporções aqui utilizadas deveriam estar acompanhadas de intervalos de confiança incluindo o efeito de desenho, o que não foi possível pela não disponibilização dos dados desagregados por conglomerados. Tal observação, no entanto, não compromete a contribuição do estudo em prover um perfil descritivo do uso de medicamentos por idosos residentes na comunidade, principalmente em face da indisponibilidade de estudos mais abrangentes sobre essa temática no Brasil.

Os dados do presente estudo indicam, em resumo, uma alta proporção de uso de medicamentos entre idosos, inclusive daqueles considerados inadequados, e desigualdades entre grupos de idosos quanto ao uso de medicamentos, quando se considera faixa etária, gênero e, principalmente, nível socioeconômico. Algumas medidas poderiam promover o uso racional de medicamentos entre idosos no Brasil: esclarecimento da família, dos cuidadores e dos próprios idosos sobre as consequências potenciais do uso não criterioso de medicamentos na idade avançada; treinamento dos profissionais quanto à prescrição e indicação de medicamentos para longevos; implementação de sistema de farmacovigilância com especial atenção ao uso de medicamentos por pessoas de maior idade; e disponibilização na rede pública de um pacote de medicamentos adequados para a população geriátrica.

Recebido em 19/5/2003

Reapresentado em 19/1/2004

Aprovado em 7/4/2004

Trabalho realizado no Departamento de Medicina Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2004
    • Data do Fascículo
      Ago 2004

    Histórico

    • Aceito
      07 Abr 2004
    • Revisado
      19 Jan 2004
    • Recebido
      19 Maio 2003
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