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Avaliação clínica e laboratorial hepática em indivíduos com insuficiência cardíaca congestiva

Resumos

OBJETIVOS: Verificar o perfil de alterações clínicas e, principalmente, laboratoriais hepáticas observadas em pacientes de cada uma das classes de insuficiência cardíaca. MÉTODOS: Por meio de um estudo seccional, foram pesquisados os dados clínicos e laboratoriais (alanina aminotransferase [ALT], aspartato aminotransferase [AST], fosfatase alcalina [FA], gama-glutamil transpeptidase [gama-GT], bilirrubinas e coagulograma) de 50 pacientes internados em 2002 em um hospital terciário com diagnóstico de insuficiência cardíaca. Os doentes foram separados de acordo com sua classe de insuficiência cardíaca e seus dados, comparados estatisticamente. Foram excluídos pacientes com hepatopatia de qualquer etiologia. RESULTADOS: A análise das médias de transaminases revelou aumento significativo apenas nos pacientes da classe IV. Por outro lado, a FA e a gama-GT apresentaram aumento progressivo de acordo com a classe de insuficiência cardíaca. CONCLUSÃO: A insuficiência cardíaca é caracterizada por perfil colestático progressivo de alterações laboratoriais, enquanto as transaminases se elevam apenas na insuficiência cardíaca mais avançada. O entendimento dessas alterações é fundamental para que se evite investigação hepática desnecessária em indivíduos com insuficiência cardíaca.

Evolução clínica; fígado; insuficiência cardíaca congestiva; testes de função hepática


OBJECTIVES: To verify the clinical alterations and, in particular, hepatic laboratory alterations in patients in each of the heart failure (HF) functional classes. METHODS: The clinical and laboratory data - alanine aminotransferase (ALT), aspartate aminotransferase (AST), alkaline phosphatase (AP), gamma-glutamyl transpeptidase (GGT), bilirubin and coagulogram - of 50 patients admitted in 2002 to a tertiary hospital with the diagnosis of heart failure were researched by means of a cross sectional study. The patients were separated in accordance with their HF class and their data were compared statistically. Patients with hepatopathy of any etiology were excluded. RESULTS: Analysis of the mean transaminase values revealed a significant increase only for the Class IV patients. On the other hand, alkaline phosphatase and GGT presented a progressive increase in accordance with the HF class. CONCLUSION: HF is characterized by a progressive cholestatic profile of laboratory alterations, while transaminase values are only elevated in advanced HF. It is of utmost importance to understand these alterations in order to avoid unnecessary hepatic investigations in individuals with heart failure.

Clinical evolution; liver; congestive heart failure; liver function tests


ARTIGO ORIGINAL

Avaliação clínica e laboratorial hepática em indivíduos com insuficiência cardíaca congestiva

Luiz Antônio Brito Arruda Vasconcelos; Eros Antônio de Almeida; Luiz Felipe Bachur

Universidade Estadual de Campinas – Campinas, SP

Correspondência Correspondência: Luiz Antônio Brito Arruda Vasconcelos Rua Roxo Moreira, 1472/14 13083-592 – Campinas, SP E-mail: luiz_vasc@yahoo.com.br

RESUMO

OBJETIVOS: Verificar o perfil de alterações clínicas e, principalmente, laboratoriais hepáticas observadas em pacientes de cada uma das classes de insuficiência cardíaca.

MÉTODOS: Por meio de um estudo seccional, foram pesquisados os dados clínicos e laboratoriais (alanina aminotransferase [ALT], aspartato aminotransferase [AST], fosfatase alcalina [FA], g-glutamil transpeptidase [g-GT], bilirrubinas e coagulograma) de 50 pacientes internados em 2002 em um hospital terciário com diagnóstico de insuficiência cardíaca. Os doentes foram separados de acordo com sua classe de insuficiência cardíaca e seus dados, comparados estatisticamente. Foram excluídos pacientes com hepatopatia de qualquer etiologia.

RESULTADOS: A análise das médias de transaminases revelou aumento significativo apenas nos pacientes da classe IV. Por outro lado, a FA e a g-GT apresentaram aumento progressivo de acordo com a classe de insuficiência cardíaca.

CONCLUSÃO: A insuficiência cardíaca é caracterizada por perfil colestático progressivo de alterações laboratoriais, enquanto as transaminases se elevam apenas na insuficiência cardíaca mais avançada. O entendimento dessas alterações é fundamental para que se evite investigação hepática desnecessária em indivíduos com insuficiência cardíaca.

Palavras-chave: Evolução clínica, fígado, insuficiência cardíaca congestiva, testes de função hepática.

Introdução

Estudos recentes classificaram as complicações hepáticas da insuficiência cardíaca em três grandes grupos: a) fibrose hepática congestiva e cirrose cardíaca; b) hepatite isquêmica cardiogênica; e c) alterações brandas nos testes de função hepática na insuficiência cardíaca congestiva (ICC)1.

A cirrose cardíaca e a fibrose hepática congestiva caracterizam-se pela deposição de colágeno dentro dos lóbulos, com e sem a formação de nódulos de regeneração, respectivamente. Ambas representam reações do estroma hepático a situações de aumento da pressão venosa, hipoxia ou necrose de hepatócitos. Entretanto, enquanto a cirrose cardíaca é hoje uma entidade clinicamente definida pela tríade de insuficiência cardíaca direita com hepatomegalia, ascite com alto conteúdo protéico e elevado gradiente de albumina entre o soro e o líquido ascítico, a fibrose hepática congestiva permanece clinicamente silenciosa.

A hepatite isquêmica cardiogênica é caracterizada pelo aumento sérico acentuado das transaminases após queda aguda e grave do débito cardíaco. Em geral surge dentro de duas a 24 horas após o fenômeno que a desencadeou. Os sintomas iniciais costumam ser fraqueza e apatia, mas, em freqüência menor, podem aparecer confusão mental, icterícia, oligúria, flapping e coma hepático. As alterações laboratoriais incluem, além do aumento sérico das transaminases, elevação da desidrogenase láctica (LDH) e da bilirrubina séricas e aumento do tempo de protrombina. Nos pacientes que sobrevivem ao episódio de hepatite isquêmica cardiogênica, as anormalidades nos testes de função hepática têm seu pico em um a três dias e retornam ao normal em cinco a 10 dias após o início dos sintomas1.

A maioria dos estudos que permitiram caracterizar a apresentação clínica dos pacientes com hepatite isquêmica cardiogênica teve como fator desencadeante da queda do débito cardíaco o choque cardiogênico2-4. Já há alguns anos pesquisadores vêm tentando entender a relações dessa entidade com as alterações hepáticas que ela provoca. O fruto dessa busca tem sido a melhor compreensão dos efeitos deste que representa o grau máximo de insuficiência cardíaca – o choque cardiogênico – sobre o fígado.

As alterações de pequena intensidade nos testes de função hepática resultantes de graus menos graves de ICC, entretanto, são pouco conhecidas. O desconhecimento é ainda maior no que se refere às manifestações clínicas provenientes de comprometimento hepático nessas circunstâncias. Sabe-se que as anormalidades enzimáticas melhoram com a compensação da insuficiência cardíaca e que a icterícia pouco intensa ocorre em um terço dos pacientes1.

Este estudo tentou estabelecer o perfil de alterações tanto clínicas como laboratoriais que os diferentes graus de ICC provocam no doente. O foco de atenção foi o fígado e, para tanto, foi dada atenção aos testes de função hepática e aos sintomas que sugeriram a existência de dano ou disfunção hepática.

Métodos

Por meio de estudo seccional, foram pesquisados os dados clínicos e laboratoriais de 50 indivíduos com diagnóstico de insuficiência cardíaca de qualquer grau, inclusive choque cardiogênico.

A população do estudo foi escolhida a partir de uma amostra compreendendo 337 pacientes, que estiveram internados em um hospital terciário, por meio de rastreamento do número do código internacional de doenças para o diagnóstico de insuficiência cardíaca (CID I500) e de dados coletados a partir dos prontuários dos doentes.

Em cada prontuário foram analisados: a) sinais clínicos de insuficiência hepática, como encefalopatia hepática, icterícia, coagulopatia, hipoglicemia, acidose metabólica, prurido, ascite e telangiectasias; b) sinais laboratoriais de lesão celular hepática, disfunção hepática e colestase (aspartato aminotransferase [AST], alanina aminotransferase [ALT], g-glutamil transpeptidase [g-GT], fosfatase alcalina [FA], bilirrubina direta [BD], bilirrubina indireta [BI] e bilirrubina total [BT], albumina, relação normatizada internacional [RNI], relação entre o tempo de tromboplastina parcial ativado do paciente e do controle [R]). Os dados laboratoriais distanciaram-se um máximo de quatro dias do quadro de descompensação clínica do doente, período em que possíveis alterações costumam ser observadas. Na tabela 1 estão apresentados os valores de referência para os dados laboratoriais pesquisados.

As classes da insuficiência cardíaca foram obtidas a partir das histórias clínicas conforme os critérios elaborados pela New York Heart Association (NYHA): classe I (pacientes com doença cardíaca, porém assintomáticos nas atividades habituais); classe II (limitação discreta à atividade física; atividades comuns resultam em fadiga, palpitação, dispnéia ou angina); classe III (limitação importante à atividade física; atividade menor que a habitual desencadeia sintomas); e classe IV (sintomas presentes em repouso).

Para os doentes submetidos a ecocardiografia, os valores da fração de ejeção (FE) ventricular (por Teichholtz) foram obtidos para posterior correlação com o nível de insuficiência cardíaca.

Doentes com história de hepatite de qualquer tipo, choque não-cardiogênico, tumor hepático, trauma hepático, alcoolismo, cirrose hepática não-cardiogênica ou outras doenças do fígado e vias biliares foram excluídos de qualquer tipo de análise. Portadores de doença óssea de qualquer tipo, assim como de neoplasia ou metástase em qualquer sítio, foram excluídos pela possibilidade de aumento de FA. Doentes cujo motivo da internação foi infarto agudo do miocárdio também não foram avaliados, pela possibilidade de aumento dos níveis séricos de AST.

A comparação dos dados laboratoriais dos doentes das diferentes classes de insuficiência cardíaca foi feita aplicando-se o teste t de Student, considerando-se significativo p-valor < 0,05.

Resultados

Dos 337 doentes, 175 (51,93%) tiveram seus prontuários analisados. Destes, 125 (71,43%) possuíam algum fator de exclusão, e os 50 restantes (28,57%) eram isentos de fatores de exclusão e, portanto, puderam constituir a casuística desejada.

Em relação ao sexo, 32 pacientes eram do sexo feminino (64%). Quanto à cor da pele, 33 (66%) eram brancos, 10 (20%) eram pardos, e sete (14%) eram negros. No que se refere às faixas etárias, não houve doentes entre zero e 10 anos. Entre 11 e 20 anos houve apenas um (2%), assim como entre 21 e 30 anos. Dois doentes tinham entre 31 e 40 anos (4%), cinco deles (10%) tinham entre 41 e 50 anos, e nove deles (18%) tinham entre 51 e 60 anos. À faixa etária de 61 a 70 anos pertenciam 17 doentes (34%), entre 71 e 80 anos havia 12 (24%) deles, e três (6%) tinham mais de 81 anos.

Quanto aos diagnósticos causais de ICC, o principal deles foi a hipertensão arterial sistêmica, presente em 31 doentes (62%). Em seguida veio o infarto agudo do miocárdio, acometendo 15 deles (30%), e a cardiopatia chagásica, presente em 13 (26%). Seis deles tinham valvopatia (12%) e três tinham angina estável (6%). Esclerodermia sistêmica, fibrilação atrial, hipertireoidismo, hipotireoidismo e obesidade estiveram presentes, cada um deles, em um doente. Dos 50 pacientes que compuseram a casuística, seis (12%) eram portadores de insuficiência cardíaca classe I, 10 (20%) pertenciam à classe II, 18 (36%) à classe III, e 16 (32%) à classe IV.

Durante o episódio de descompensação, 47 pacientes (94%) apresentaram dispnéia, 25 (50%), edema de membros inferiores, 15 (30%), dispnéia paroxística noturna, 13 (26%), ortopnéia, sete (14%), fadiga, e quatro (8%), anasarca. Precordialgia, taquicardia, nictúria, oligúria, inapetência e obnubilação estiveram presentes, cada uma delas, em dois doentes. Dor epigástrica e náuseas ocorreram separadamente em um doente. Quanto ao choque cardiogênico, este esteve presente em quatro doentes (8%). Foram registrados sete óbitos (14%) ao final da internação escolhida para análise.

Os resultados relacionados aos dados laboratoriais estão apresentados na tabela 2.

Em relação à classe da ICC e às enzimas hepáticas, procedeu-se análise bivariada, cujos resultados estão apresentados a seguir.

AST - Entre os seis pacientes com insuficiência cardíaca classe I, o menor valor foi de 13 U/L e o maior, de 30 U/L; o desvio padrão foi de 6,85 e a mediana, de 20,5 U/L. Entre os 10 pacientes da classe II, o menor valor foi de 11 U/L e o maior, de 30 U/L; o desvio padrão foi de 6 e a mediana, de 20,5 U/L. Entre os pacientes com ICC de classe III, o maior valor de AST foi de 158 U/L e o menor, de 13 U/L; o desvio padrão foi de 32,67 e a mediana, de 20,5 U/L. Entre os 16 pacientes pertencentes à classe IV, o menor valor foi de 7 U/L e o maior, de 126 U/L; o desvio padrão foi de 28,05 e a mediana, de 54 (gráfico 1). A análise das médias de AST pelo teste t de Student foi estatisticamente significativa apenas quando se comparou a média da classe IV com as demais médias.


ALT - Entre os pacientes pertencentes à classe I, o menor valor foi de 8 U/L e o maior, de 23 U/L; o desvio padrão foi de 5,65 e a mediana, de 16 U/L. Entre os pacientes da classe II, o menor valor foi de 9 U/L e o maior, de 56 U/L; o desvio padrão foi de 14,29 e a mediana, de 18 U/L. Entre os pacientes da classe III, o menor valor foi de 3 U/L e o maior, de 100 U/L; o desvio padrão foi de 22,09 e a mediana, de 19 U/L. Entre os pacientes da classe IV, o menor valor foi de 2 U/L e o maior, de 264 U/L; o desvio padrão foi de 63,80 e a mediana, de 61 U/L (gráfico 2). A análise das médias de ALT pelo teste t de Student foi estatisticamente significativa apenas quando se comparou a média da classe IV com as demais médias.


FA - Entre os pacientes pertencentes à classe I, o menor valor foi de 149 U/L e o maior, de 202 U/L; o desvio padrão foi de 23,89 e a mediana, de 193 U/L. Os pacientes da classe II tiveram o menor valor de 139 U/L e o maior, de 344 U/L; o desvio padrão foi de 58,53 e a mediana, de 216,5 U/L. Entre os pacientes da classe III, o menor valor foi de 124 U/L e o maior, de 572 U/L; o desvio padrão foi de 127,90 e a mediana, de 195 U/L. Entre os pacientes da classe IV, o menor valor foi de 171 U/L e o maior, de 461 U/L; o desvio padrão foi de 109,87 e a mediana, de 293,5 U/L (gráfico 3). A análise das médias de FA pelo teste t de Student foi estatisticamente significativa apenas quando se compararam as médias das classes I e III com as médias das classes I e IV.


g-GT - Entre os pacientes pertencentes à classe I, o menor valor foi de 12 U/L e o maior, de 40 U/L; o desvio padrão foi de 12,83 e a mediana, de 24 U/L. Os pacientes da classe II tiveram o menor valor de 22 U/L e o maior, de 218 U/L; o desvio padrão foi de 70,93 e a mediana, de 56 U/L. Entre os pacientes da classe III, o menor valor foi de 18 U/L e o maior, de 883 U/L; o desvio padrão foi de 252,50 e a mediana, de 77 U/L. Entre os pacientes da classe IV, o menor valor foi de 18 U/L e o maior, de 334 U/L; o desvio padrão foi de 88,58 e a mediana, de 116 U/L (gráfico 4). A análise das médias de g-GT pelo teste t de Student foi estatisticamente significativa apenas quando se compararam as médias da classe I com as médias das demais classes.


A análise das médias de g-GT pelo teste t de Student está representada pelo p-valor presente em cada um dos gráficos.

Classe da ICC vs. Óbitos - Não houve óbitos entre os pacientes das classes I e II. Entre os 18 pacientes da classe III foram registrados dois óbitos (11,11%) e entre os da classe IV, cinco óbitos (31,25%).

Discussão

No que se refere às faixas etárias, os resultados obtidos foram condizentes com aqueles descritos na literatura, demonstrando que a incidência de ICC aumenta com a idade. Já é fato conhecido que a prevalência dobra a cada década de vida, encontrando-se em cerca de 40% em pessoas acima de 70 anos de idade5.

Uma possível explicação para essa distribuição etária pode ser encontrada quando se analisam as incidências dos fatores envolvidos na gênese da maior parte dos casos de insuficiência cardíaca, como infarto agudo do miocárdio e hipertensão, que tendem a aparecer em indivíduos de mais idade.

Ao contrário do que acontece com a população adulta, cuja prevalência de ICC varia pouco ao redor do mundo6, o número de crianças afetadas por essa condição varia bastante de acordo com a região em estudo7. No presente projeto, apenas um paciente, dos 50 pesquisados (ou seja, 2%), pertencia à faixa etária pediátrica.

Conforme mencionado anteriormente, dos 50 pacientes selecionados para o estudo, 18 eram homens e 32, mulheres. Entretanto, essa não deve ser considerada a proporção de casos de insuficiência cardíaca entre os dois gêneros, uma vez que existiria aí um viés de seleção, haja vista que os fatores de exclusão predominaram no sexo masculino. Dos 175 pacientes que chegaram a ser pesquisados, 91 (52%) eram homens e 84 (48%), mulheres. Dos 125 doentes que não participaram da casuística em decorrência de algum fator de exclusão, 74 (59,2%) eram homens e 51 (40,8%), mulheres.

A melhor maneira encontrada para estabelecer a distribuição entre os sexos deste estudo foi a partir dos 337 pacientes inicialmente selecionados. Destes, 186 (55,20%) eram homens. A maior ocorrência de ICC e óbitos entre os indivíduos do sexo masculino é concordante com o que está descrito na literatura. A maior parte dos estudos aponta que, entre as mulheres, a doença é menos freqüente e menos grave8,9, o que é favorecido pelo melhor remodelamento cardíaco que nelas ocorre. Os eventos subjacentes a essa realidade ainda não estão bem estabelecidos. Entretanto, acredita-se que diferenças nos hormônios sexuais e a maior resistência dos miocardiócitos à apoptose nas mulheres seriam fatores que contribuiriam para sua existência.

No que se refere às diferenças hormonais, o estrógeno parece desempenhar papel essencial. Muitos de seus efeitos sobre as células do sistema cardiovascular são conhecidos e considerados benéficos. Estima-se que cerca de 5% das proteínas produzidas pelos miocardiócitos sejam reguladas por estrógenos, inclusive a expressão de receptores para endotelina-110.

Conforme o esperado, as duas etiologias mais freqüentes da ICC encontradas neste estudo foram a hipertensão arterial sistêmica e o infarto agudo do miocárdio. Contudo, a ordem de importância dessas duas doenças contrasta com o que está descrito em vários estudos, que apontam a doença arterial coronariana como a causa mais comum de insuficiência cardíaca11,12. As valvulopatias, que no passado constituíram a principal etiologia, estão se tornando menos prevalentes. Neste estudo, a valvulopatia foi a quarta principal etiologia, estando presente em 12% dos doentes.

Deve-se ressaltar, aqui, que os 16 doentes incluídos neste estudo que pertenciam às classes funcionais I ou II da NYHA não tiveram como motivo de internação a ICC. Os motivos foram os mais diversos (descompensação de insuficiência renal crônica, o motivo mais freqüente, celulite de membros inferiores, fibrilação atrial, etc.), mas nenhum deles constituía co-morbidade considerada critério de exclusão para o estudo.

Os resultados das transaminases revelaram aumento significativo apenas nos doentes pertencentes à classe IV de insuficiência cardíaca. Entretanto, esse aumento mostrou-se apenas de pequena intensidade, não se apresentando conforme o perfil descrito para a hepatite isquêmica, em que são esperados valores 10 a 20 vezes superiores aos limites de normalidade1. Esses dados demonstram que não é necessário que haja falência circulatória grave, como o choque, para que ocorra lesão celular hepática, embora esta seja muito mais evidente nessa situação. Revelam ainda que, em indivíduos com insuficiência cardíaca classes I, II e III, a congestão e a diminuição da perfusão hepática ainda não são suficientes para causar lesão nos hepatócitos.

Esses resultados são compatíveis com aqueles obtidos por estudo que procurou relacionar débito cardíaco e anormalidades da função hepática13. Os doentes foram divididos em três grupos, de acordo com o débito cardíaco. Aumentos significativos de AST e ALT foram observados apenas no grupo de pior débito (menor ou igual a 1,5 L/min/m2).

A análise dos resultados de FA e g-GT mostrou um perfil distinto daquele das transaminases. De maneira geral, houve aumento progressivo dos níveis séricos dessas enzimas conforme a piora da classe de insuficiência cardíaca. Comparando-se as médias de indivíduos das classes II, III e IV com as de indivíduos da classe I, verificou-se que esses aumentos foram mais significativos nas classes mais avançadas. Apenas duas situações não seguiram essa tendência. A comparação das médias de FA entre os indivíduos das classes I e II apresentou p-valor de 0,07834. Embora não estatisticamente significativo, esse valor aproxima-se muito da significância, talvez podendo esta ser obtida com a ampliação da casuística. A outra situação é a queda da média de g-GT da classe III para a classe IV, ao invés de seu esperado aumento. Isso pode ser explicado pela ocorrência de um valor discrepante e bastante elevado de g-GT (883 UI/L), que ocorreu em um doente da classe III e elevou sua média.

Com base nesses dados, pode-se dizer que a insuficiência cardíaca é caracterizada por um perfil colestático de alterações laboratoriais, com aumento de FA e g-GT, e que a gravidade da colestase se correlaciona com a classe da ICC. Como a FA é produzida pelos hepatócitos e a g-GT pelas células epiteliais do trato biliar, pode-se inferir que os hepatócitos e o epitélio do trato biliar são os principais alvos da hepatopatia nesses doentes14, havendo certo grau de obstrução biliar intra-hepática desde os níveis mais brandos de insuficiência cardíaca.

Em um estudo prospectivo em que se procurou avaliar a relação entre o grau de regurgitação tricúspide observado ao ecocardiograma com alterações laboratoriais hepáticas14, esse perfil de colestase também esteve presente, ocorrendo de maneira crescente de acordo com o grau de regurgitação. Além disso, ele também registrou aumento dos níveis de bilirrubina e anormalidade da função de síntese hepática, indicada pela hipoalbuminemia encontrada. Esses resultados não foram observados no presente trabalho, considerando-se que a maior parte dos doentes não tinha em seus prontuários dosagens de bilirrubinas e albumina sérica em datas próximas ao episódio de descompensação.

A FA e a g-GT estão localizadas no trato biliar e estão elevadas nas situações em que os canalículos biliares sofrem algum tipo de dano. A ocorrência de níveis elevados dessas enzimas em doentes com ICC tem motivado a proposição de outros mecanismos para explicar a disfunção hepática vigente na ICC, além dos tradicionais, que atribuíam à isquemia e à congestão os achados de lesão hepatocelular (com elevação de AST e ALT). Um desses modelos15 baseia-se no aumento da pressão mecânica dentro dos sinusóides hepáticos, que estaria associado à lesão das células endoteliais dos sinusóides e com a conseqüente transmissão da pressão diretamente para os hepatócitos e suas zônulas de oclusão. Com o aumento dessa pressão, as zônulas, que são responsáveis por separar o meio extravascular dos canalículos biliares, seriam rompidas, originando uma fístula entre esses dois compartimentos. Essas alterações já foram comprovadas por microscopia em ratos submetidos a obstrução do retorno venoso hepático. Alterações semelhantes têm sido relatadas em seres humanos com colestase extra-hepática.

Todavia, a literatura sobre o assunto demonstra que o perfil de alterações laboratoriais hepáticas na insuficiência cardíaca ainda não está bem estabelecido, existindo opiniões e estudos contraditórios. Alguns consideram típico o aumento predominante das transaminases, enquanto outros defendem um modelo colestático ou mesmo misto13-15. Há ainda aqueles que consideram a não existência de um padrão específico. O entendimento dessas alterações é fundamental para que se evite investigação hepática desnecessária em todos os indivíduos com insuficiência cardíaca. Doentes que exibam aumento moderado de FA e g-GT, por exemplo, podem ter sua terapia para a insuficiência cardíaca intensificada antes que outras propedêuticas para doença hepática sejam realizadas, o que pode evitar que se retarde seu diagnóstico e também que se submeta o doente a procedimentos invasivos, como a biópsia hepática.

Artigo recebido em 04/07/06; revisado recebido em 04/09/06; aceito em 05/10/06.

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  • Correspondência:

    Luiz Antônio Brito Arruda Vasconcelos
    Rua Roxo Moreira, 1472/14
    13083-592 – Campinas, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jun 2007
    • Data do Fascículo
      Maio 2007

    Histórico

    • Recebido
      04 Jul 2006
    • Revisado
      04 Set 2006
    • Aceito
      05 Out 2006
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